Ana Luísa Amaral

Cala-se uma voz fundamental da poesia portuguesa contemporânea. Cala-se uma escritora de fantásticas histórias infantojuvenis. Cala-se a mulher, a investigadora com um sólido percurso nos Estudos Feministas e nos Estudos Queer. Cala-se a divulgadora e coordenadora da edição anotada de “Novas Cartas Portuguesas”, o livro publicado com escândalo em 1972 por Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa. No último poema do livro “Às vezes o Paraíso”, Ana Luísa Amaral perguntava: “Era então essa/ a terra do segredo,/ o espaço de ventura/ prometido?”. Não sabemos. Nunca saberemos. A voz caiu num profundo silêncio. As perguntas, os dilemas, as inquietações desta poeta cuja poesia se entranhava no mais íntimo de nós, ficam. A brotar sentimentos como uma fonte de fios de água. Às vezes o paraíso é isso.

Este texto de Valdemar Cruz, intitulado “Ana Luísa Amaral: cai o silêncio sobre a voz da poeta”, escrito no dia da morte da autora de Minha Senhora de Quê, pode ser encontrado aqui.
O que há num nome?, pergunta Ana Luísa Amaral no poema homónimo do livro homónimo (mas dito em inglês: What’s in a name?, parafraseando Romeu e Julieta, ato II, cena 2). “Extirpado o nome, ficará o amor/, ficarás tu e eu – mesmo na morte,/ mesmo que em mito só”, diz a poeta. “Se fosse dado outro nome/ À rosa, seria menos doce o seu perfume?”, pergunta Shakespeare.
Fica também um incêndio de palavras, como no poema ekphrástico “A conversão”, no livro Ágora, p. 77, a partir do quadro A conversão de Paulo, de Caravaggio (1600-1601):

Quando a cegueira,

relâmpago de fogo que me incendiou,

me fez olhar a luz

 

não vi sequer as patas do cavalo,

nem o seu dorso inverso e ameaçante

que eu nunca pressentira,

eu à sua mercê

– e à mercê d’Ele

 

Abri os braços em fervor recente

de crente convertido,

e nada disse:

agi

 

Só mais tarde falei

 

Não sei se pressenti

dos gestos das palavras que no futuro

disse

 

e como o seu futuro

incendiou cidades e poluiu nascentes,

pisou até à morte

gente que não a minha

 

Ainda que, por dentro,

naquele breve instante de cegueira,

eu sentisse

reconvertida e breve: a confusão

do amor –

Sobre o seu epitáfio, disse nesta entrevista a autora (com Marinela Freitas) da antologia do corpo: outras habitações, identidades e desejos outros em alguma poesia portuguesa, para quem era mais fácil escrever poemas do que fazer livros, que gostaria que fosse apenas

Deixa uma filha maravilhosa, amigos e poemas. Leva saudades.

 

No XIV Encontro Nacional da APP, no dia 9 de julho de 2021, em Chaves, Ana Luísa Amaral desenvolveu a seguinte reflexão, sobre “Uma terra de ninguém (com gente dentro): que língua fala a poesia?”, que é um inédito que vai ser publicado na revista Palavras, 58-59, a editar em setembro de 2022, e para o qual convoca, para a sua “ética da alegria”, poetas e escritores como Anna Akhmatova, Toni Morrison, Camões, Sá de Miranda, Sá-Carneiro, Antero, Fernando Pessoa, Virginia Woolf, Primo Levi e o tigre de William Blake, “cujo olhar rompia, aceso, as florestas da noite, metáforas para a ignorância e para a barbárie”:

Começo com duas ideias. A primeira: ainda que seja comunicação, o primeiro gesto da arte (neste caso, a poesia) é consigo mesma. A interação (que inclui a ideia de “intenção”, porque dirigido ao outro) vem depois. Mas o gesto primeiro é sempre um salto no vazio. Por isso me parece que os grandes poemas são escritos “em falha”, embora mantendo com o real sempre uma relação. A poesia é sempre escrita numa língua estrangeira, como disse mais do que uma vez Maria Irene Ramalho.

A segunda ideia que para aqui trago relaciona-se com a imagem da impressão digital. A impressão digital é o que melhor nos define como seres humanos, como indivíduos absolutamente únicos; não há duas impressões digitais iguais. Mas a impressão digital define-nos a identidade só do ponto de vista biológico. Eu sou portuguesa, eu não sou inglesa, nem alemã, nem francesa. Mas sou, dentro da minha individualidade, europeia. Sinto-me europeia. Porque a identidade é também identificação e a identificação constrói-se pela presença de memórias. O nosso passado cultural europeu é comum e, tendo obviamente a ver com elementos variadíssimos, não passa por uma língua comum, mas, e no caso da chamada Europa Ocidental, por um entendimento da cidadania que de alguma maneira nos investe de gestos semelhantes.

Por isso nos desencanta hoje a Europa, este espaço que passou a ser uma via de trânsito duplo, ameaçado que está pela hegemonia das chamadas indústrias financeiras, mas continuando a ser para muitos sinónimo de salvação. Refiro-me aos refugiados, esses e essas que têm vindo a morrer aos milhares no estreito da Sicília, seres humanos que fogem da guerra civil da Síria, do corno de África, da crise iraquiana. Esses contra os quais alguns dos países da nossa Europa erigiram muros – ora de silêncio, ora burocráticos, ora reais. Ao mesmo tempo, a Europa deixou de ser somente Europas a cruzarem-se: passou a integrar outros continentes (o asiático, o africano), outras religiões (a hindu, a muçulmana). E como entendermo-nos nesta espécie de Babel? Por mim, é extraordinário ser Babel e habitá-la, e tentar, a partir dela, construir sentidos, mesmo que vários sentidos. Porque um sentido único afigura-se-me uma ideia repugnante. E ser Babel é também ser humano.

Penso numa pergunta colocada pela poeta russa modernista Anna Akhmatova: “Os caminhos do passado estão há muito cerrados/ E o que é o passado agora para mim?”. O que é o passado para mim? Ou, dito de outra forma, o que é para mim a tradição? Devo dizer que, ao mesmo tempo, nada e tudo. Entendo a tradição como passível de ser moldada e constantemente revista, dialogada, portanto. Entendo que há de haver um ponto qualquer de consenso entre o legado da tradição literária e a sua avaliação (pelo que esta nos ensinou a pensar, a sermos melhores seres humanos) e a revisão desse mesmo legado, quanto mais não seja pelo seu alargamento de fronteiras, de gostos, de sensibilidades. Partilho do sentir de Toni Morrison, que, sete anos antes da atribuição do Prémio Nobel, escrevia: “E eu, pelo menos, não tenciono viver sem Ésquilo ou William Shakespeare, ou James, ou Twain, ou Hawthorne, ou Meville, etc., etc., etc.. Deve haver alguma maneira de desenvolver o cânone sem santificar esses autores.” Morrison referia-se a autores clássicos e norte-americanos, eu incluiria aqui, evidentemente, portugueses: Camões, Sá de Miranda, Sá-Carneiro, Antero, Fernando Pessoa, etc., etc., etc…. Vejo, pois, a tradição uma relação eminentemente plástica. Por isso, o passado e a tradição são-me fortíssima razão de ser eu, aqui e agora. Porque ela, a tradição literária, é identidade e identificação, e a identificação produz-se pela construção de memórias.

Ora a poesia, existindo numa camada deslocada da pele, não existe descolada dessa mesma pele. Atravessa-se na sua escrita um caminho que vai do plano vivido para o plano imaginado, mas que viaja a partir do vivido. É por isso que o famoso fingimento de Pessoa não exprime uma mentira. O que existe é não a mentira mas a verdade da vida, defletida, transposta para uma língua diferente, mas nunca corrompida, e servida por uma possibilidade musical e rítmica. O poético é o lugar privilegiado para exercitar a liberdade, sem nunca se deixar de pertencer ao mundo que nos gera e que nos alimenta.

“Eu simplesmente sinto/ com a imaginação,/ não uso o coração”, escreve também Pessoa, em Isto. Ao escrever, é “com a imaginação que se sente”; mas é também com o corpo e com o coração, deslocados do estado da vida “normal”, mas ali, paradoxalmente, presentes, elevados. Talvez a poesia, porque trabalha com a linguagem, e a linguagem passa pelo conhecimento do mundo e pela consciência de si, o tenha sabido desde sempre, desta diferença de colocação e intensidade, avançando ainda para um terceiro estádio no processo criativo, o da imaginação, onde se “começa a ver o que [se] tinha na mente”, como disse Virginia Woolf (1933).

Uma proposta: entender a poesia como qualquer coisa de intermédio, uma terra de ninguém com gente dentro, implicando quem escreve, quem lê – e o mundo. Nesse vaivém entre escrita e leitura, a poesia, mesmo se lírica (ou justamente por isso, porque lhe pode assistir a mais eloquente forma de resistência ao económico e ao numérico) cumpre sempre uma funda obrigação ética, ao permitir-se ser uma espécie de “obrigação moral para com os emudecidos”, como o dizia Primo Levi. Simultaneamente, ao ser resistente e dúctil, como um junco, ou uma folha de erva, ela vive da imaginação, a mais imaterial matéria surgida do material, que é o corpo. A poesia que me interessa talvez seja isto: uma ética da alegria, contrariando o poder e os “impotentes do poder”, uma terra com gente entre espaços de vazio. Também uma língua que efetua uma relação com os mortos e com aqueles que ainda não nasceram,  sempre testemunho do seu lugar e do seu tempo, ainda que atravessando tempos, e lidando com processos que são “o modo humano de deitar raízes, de cada um tomar o seu lugar no mundo a que todos chegamos como estranhos”.

A terra de ninguém com gente dentro é quem escreve e quem lê, mas é também a terra daqueles e daquelas que antes a foram habitando. A minha terra de ninguém com gente dentro é, porque de gente feita, uma terra de corpos e de vozes dos que antes de mim tiveram voz. E ainda as vozes dos que vivem ao meu lado, temporal e espacialmente, e que tantas vezes não lhe têm direito. “Tyger Tyger, burning bright,/ In the forests of the night;/ What immortal hand or eye,/ Could frame thy fearful symmetry?” “Tigre Tigre, ardendo aceso, / Pelas florestas da noite; / Que mão imortal, que olhar, / Pôde forjar tua terrível simetria?”. Convoco aqui o tigre de William Blake, cujo olhar rompia, aceso, as florestas da noite, metáforas para a ignorância e para a barbárie. Defendendo que esse tigre, estando no verso, está na vida. E resiste, e não se rende. E está, portanto, aqui, e vivo. Ao nosso lado –

 

Fonte da imagem aqui.