António Mega Ferreira

António Mega Ferreira (1949-2022) foi autor de mais de três dezenas de títulos de ficção, ensaio e poesia – além de tradutor e jornalista, foi também editor e gestor cultural, responsável máximo pela Expo’98 e administrador do Centro Cultural de Belém, entre muitos outros projetos e atividades. Foi um dos maiores intelectuais portugueses da segunda metade do século XX e um verdadeiro homem da Renascença.

Numa síntese necessariamente incompleta, António Mega Ferreira (AMF) foi jornalista de 1975 a 1986, em títulos como o Jornal Novo, Expresso e O Jornal, e na RTP, onde chefiou a redação da informação da RTP2. De 1983 e 1985, foi chefe de redação do JL – Jornal de Letras, Artes e Ideias. Foi diretor editorial do Círculo de Leitores, entre 1986 e 1988, e fundou e dirigiu a revista Ler. Chefiou a candidatura de Lisboa à Expo’98, foi comissário executivo da Exposição Mundial e presidente do respetivo conselho de administração. Dirigiu a representação portuguesa à Feira do Livro de Frankfurt, em 1997, em que Portugal foi o país-tema, e comissariou várias exposições, nomeadamente “Viagem ao Século XX” (CCB, 1998) e “Os Dias de Pascoaes” (Amarante, 2002). Foi colunista no Expresso, Diário Económico, Diário de Notícias, O Independente, Público, e nas revistas Visão e Egoísta.

Foi presidente do conselho de administração da Fundação do Centro Cultural de Belém, entre 2006 e 2012, e diretor executivo da Orquestra Metropolitana de Lisboa, de 2013 a 2019.

Em 1998, foi agraciado com a Grã-Cruz da Ordem Militar de Cristo. Em 2002, recebeu o Grande Prémio de Conto Camilo Castelo Branco, pelo livro A Expressão dos Afectos. Em 2022, recebeu o Grande Prémio de Literatura de Viagens Maria Ondina Braga, da Associação Portuguesa de Escritores, pela obra Crónicas Italianas.

António Mega Ferreira amava a literatura e todas as artes, era um erudito generoso e cúmplice, um grande pensador e escritor, um apaixonado por viagens e por Itália, em particular. Sobre Roma escreveu vários livros e vários ‘exercícios de reconhecimento’, o que levou Tolentino Mendonça a dizer que “parecia o intérprete que a cidade tinha escolhido para se dizer melhor”.

Efetivamente, em Roma – Exercícios de Reconhecimento (Sextante, 2003, pp. 173-174), reconhece que “tudo, na cidade, é estímulo à escrita, tudo é recurso aos sentidos, tudo exalta a criatividade”. Podemos admirar as ruínas, como dizia Stendhal, “imaginando o que falta e abstraindo o que existe”. Podemos percorrer as suas igrejas e encontrar aí uma ‘pulsão religiosa sem paralelo’, podemos visitar os seus museus, as obras supremas, “as ruas, a beleza da gente, o seu vozear cantado, as cores, o clima, os jardins, os terraços debruçados do alto dos prédios sobre o vazio; e as laranjeiras, as mil e uma espécies de pinheiros, as azáleas e as magnólias, «faluas brancas num mar verde carregado», como escreveu o poema Giuseppe Conte.”

Podemos admirar os seus mitos – como a história admirável da paixão de Floria Tosca, contada nas pp. 131-143, para concluir que “Floria Tosca nunca existiu; nem Cavaradossi, nem Scarpia; Cesare Angelotti é apenas o arquétipo de um dos desgraçados republicanos de Roma; a rainha Maria Carolina nunca chegou a entrar na cidade.

Mas existem os lugares, a antiquíssima geografia de Roma, o calor de junho; existe o drama de Sardou, a música de Puccini e o génio incomparável da Callas. Foi com isso, e só com isso, que se construiu um dos grandes mitos do século XX. E o mais belo disco de ópera italiana que alguma vez se gravou.”

E em nota de rodapé acrescentou: Tosca, de Giacomo Puccini, com Maria Callas, Giuseppe di Stefano, Tito Gobbi, Orquestra e Coro do Teatro Alla Scala, direção de Victor Sabata, direção artística de Walter Legge, gravação de 1953 (EMI 7 47175 8).

No livro A Expressão dos Afectos (Assírio & Alvim, 2001), mostra, de forma profunda, em “O Homem Que Inventou Borges” (pp. 115-134), que, ao contrário do que pretende Miguel Esteves Cardoso, não se deixou inibir pelos maiores, como Borges. Aí, reflete sobre o homem que inventou uma sombra de um autor, que o seu criador julgou ter inventado. Estamos a falar de um homem obscuro, cuja genealogia AMF traça e cuja ‘notoriedade pública’ começa quando Borges escreve o texto “Pierre Menard, o autor do Quixote” – um dos mais geniais do genial autor de Ficções (1944). Ao refletir sobre Menard, AMF reflete sobre o Borges que reflete sobre o Quixote que reflete sobre a origem da realidade, e pode concluir, retomando o método que permite a Pierre Menard escrever páginas que coincidem – palavra por palavra e linha por linha, como diz Borges, ou seja, como diz Mega Ferreira – com as de Miguel de Cervantes, e pode concluir, dizíamos nós com ele(s), que “D. Quixote, o livro, existiria, mesmo que Cervantes não o tivesse escrito.” (p. 123). Mas AMF vai mais longe e discute a ‘perceção enviesada’ do lugar que Pierre Menard tem na obra de Borges, argumentando sobre a influência daquele “na obra de autores que lhe são anteriores ou posteriores” (p. 127), sustentando, borgesianamente, que é possível que o autor francês tenha sido um escritor fantasma ao serviço de Jorge Luís Borges. O corolário acaba por ser a “hipótese escandalosa” de ‘uma obra sem autor e sem sentido’ em que “Borges [nos aparece] assim como o traço visível de uma realidade que o transcende, uma outra biblioteca arquitetada nas trevas pela lúcida insânia de Pierre Menard, igual de Piranesi e discípulo de Blake.” (p. 133)

Que nos fica, então, de Borges?, pergunta Mega Ferreira (id., ibid.): ‘Talvez o rasto de uma criatura sonhada por Pierre Menard’, “talvez o que escreveu estas páginas, o que as tinha já descritas antes mesmo que um braço e o fio de uma espada as lavrasse na clara, insustentável ausência de Borges” – talvez o braço de Mega Ferreira, a criatura sonhada por ele.

 

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