Contacto entre línguas
...consequências do contacto
... criação de novas línguas
O crioulo de Cabo Verde

.Condições, condicionantes e consequências do contacto.

Para que haja contacto, são necessárias pelo menos duas línguas, uma língua e um dialecto ou dois dialectos em presença. Que consequências poderão advir desse contacto é a questão que nos ocupará em seguida. Visto que, entre elas, se estabelecem relações de força, haverá que determinar, para cada situação concreta, quais as suas tendências e direcção. Língua alvo (LA, a partir daqui) será aquela para a apropriação da qual tende uma comunidade cuja língua de origem (LO, a partir de agora) pode ser substituída pela LA ou simplesmente modificada, por adopção de características dessa outra língua, podendo ser esta última igualmente afectada pela LO. O percurso e o resultado do contacto entre elas depende fundamentalmente do tipo de relação que as respectivas comunidades estabelecem e do tempo durante o qual a mantêm. Se a LO desaparece rapidamente, por submissão total à LA, e sobretudo se tal processo tiver tido lugar há séculos, torna-se difícil ter acesso ao percurso da mudança linguística que terá ocorrido na língua que desapareceu. De facto, nos casos de substituição abrupta de uma ou mais línguas por outra, que se sobrepõe, interessará mais analisar o resultado final e as condições que o provocaram do que o curto processo de transformação que se operou.
A mudança linguística é um fenómeno que afecta as línguas no seu porvir histórico. Todo o sistema linguístico é constituído por subsistemas sujeitos a transformação, por vezes em conjunto com outros subsistemas, por vezes isoladamente (Labov refere a mudança linguística em termos de característica iniludível de qualquer língua). Por detrás da mudança está a variação linguistica, fenómeno inerente aos sistemas; variação que lhes confere o carácter heterogéneo, embora funcionalmente organizado e em equilíbrio, fruto de renovados reequilíbrios. Citando Labov (1972 [1976: 189)]: "O estudo da linguagem sempre se dedicou, em grande parte, a descobrir as unidades funcionais invariantes e a definir as estruturas estáveis que as reúnem. Este método de análise permitiu progressos consideráveis. Não deixa, contudo, de ser verdade que, em muitos domínios, sentimos a necessidade duma abordagem diferente, dirigida para os traços variáveis da língua", e ainda (p. 301), "A aptidão humana em aceitar, conservar e interpretar regras providas de condicionantes variáveis constitui assim um aspecto importante da competência linguística, da língua.". Mais: Labov afirma que qualquer falante integra na sua competência o domínio da direcção da mudança, da aceitabilidade das variantes e da utilização estilística e socialmente adequada das variantes de que dispõe.
A mudança linguística é mais fácil de estudar quando se comparam estados de língua sucessivos; por essa razão constitui, naturalmente, o objecto de estudo da linguística diacrónica. Contudo, é possível detectar, sincronicamente, mudanças em curso ou tendências de mudança. Por exemplo, em Português falado actual observa-se a existência de construções relativas concorrentes (é propositadamente que não lhes chamamos variantes, visto ser problemática a questão da existência de verdadeiras variantes em sintaxe), do tipo:
1) SN objecto directo + preposição regida pelo verbo + pronome relativo + esse verbo
-"O amigo de QUE/QUEM (eu) te falei";
2) SN + pronome relativo reduzido a QUE + verbo
- "O amigo QUE (eu) te falei";
3) SN + QUE + verbo + preposição regida por esse verbo + pronome resumptivo (retoma do SN)
-"O amigo QUE (eu) te falei dele".
Embora os falantes mais normativos considerem 2) e 3) agramaticais, o facto é que estão atestadas em falantes com escolarização média/superior, como se tem vindo a constatar, e de que darei o seguinte exemplo, produzido por um professor universitário: "uma zona QUE os alunos [...] não vão concorrer A ELA".
Alterações no sistema dos relativos ou mesmo fenómenos idênticos ao referido para o Português ocorrem também em Francês, Italiano e Espanhol falados, podendo pôr-se a hipótese de se estar a assistir a uma mudança em curso no sistema dos relativos e na regência preposicional, na área da România ocidental (a construção com resumptivo existe no sistema do Romeno). Um outro exemplo, desta vez do Português falado do Brasil, na sua variedade não-padrão (influenciada por um enquadramento histórico-linguístico de crioulização), consiste na existência de regras de concordância nominal e verbal variáveis, concorrentes das regras categóricas do padrão. Assim, por exemplo, a par do padrão "as casas brancas" existe a variante "as casa branca", pondo os linguistas que estudam o fenómeno hipóteses tendentes a explicar a variação através de restrições fonológicas, morfológicas e sintácticas (sobre esta questão, ver o trabalho fundamental de Scherre, 1988; Guy, 1989; Holm, 1987). Com o decorrer do tempo, e sob condições favoráveis, pode pôr-se a hipótese de que estas variantes, sociolinguisticamente marcadas, venham a substituir as actuais padronizadas, implicando assim uma mudança linguística no domínio da concordância nominal e verbal. Caso tal se venha a verificar, estaremos, actualmente, perante uma mudança em curso.
A mudança que ocorre em situações de contacto linguístico não se confunde com a mudança inerente a qualquer língua; trata-se de um processo do mesmo tipo mas com origem diferente e consequências diversas. (Convém relembrar que a maioria das línguas está exposta a influências exógenas - excepto se se tratar de casos de isolamento total, raros - por simples proximidade ou por interesse nomeadamente tecnológico e/ou cultural, podendo essa influência contribuir para pequenas mudanças estruturais; a maior parte das vezes, porém, essa influência limita-se ao léxico). Interessa, então, que a terminologia usada sirva essa diferença, distinguindo a mudança inerente e a mudança decorrente do contacto. Este último tipo de mudança é realizado pelos falantes que, numa situação de contacto com outra língua, tendem a aproximar-se progressivamente do sistema desta (do sistema da LA), introduzindo-lhe modificações em parte explicáveis pelo sistema prévio que possuem (LO). Os falantes dessa LA manter-se-ão, em princípio, monolingues, enquanto os primeiros se tornam bilingues; poderá, contudo, acontecer que a LA venha a ser afectada pela versão que dela própria falam os nativos da LO, ou pela própria LO, sob condições de forte convivência e de reconhecimento da eventual importância da "comunidade que muda" (em Inglês, shifting population). Se os falantes desta comunidade tendem a tornar-se bilingues, isso pode dever-se ao facto de serem numérica e socialmente pouco relevantes face ao grupo da LA (pense-se, como exemplo possível, no caso das comunidades portuguesas imigradas nos países europeus); pode também, explicar-se pelo facto de estarem fortemente motivados para a sua apropriação (como acontecerá num contexto de aquisição da LA que seja determinante para uma inserção social desejada, por exemplo).
Precisemos um pouco mais: a população que tende para a LA (a "shifting population") reúne, em princípio, condições sociológicas que favorecem esse movimento - ou são minorias étnicas e/ou linguísticas, ou estão económica e/ou politicamente dependentes, ou constituem um grupo socialmente pouco influente... ou todos estes factores conjugados. Essa população, ao mesmo tempo que se apropria da língua alvo, integra, no decorrer do processo, traços dessa mesma língua na sua LO. Há, assim, um movimento em duplo sentido; no que respeita à influência da LA sobre a LO, ela poderá limitar-se a empréstimos lexicais (vocábulos alógenos incorporados) ou, pelo contrário, estender-se à gramática. Não é evidente prever a priori qual das hipóteses será verificada, visto, numa situação de contacto, entrarem em jogo condicionantes não linguísticas, como a já referida manutenção deliberada da LO, por razões afectivas, culturais ou políticas. Relativamente à LA falada por estas comunidades, também ela pode ser afectada apenas por empréstimos ou também por traços pertencentes ao sistema da LO.
Considere-se, a título de exemplificação da influência que a língua alvo pode ter sobre a língua de origem da "shifting population", o caso da introdução de vocábulos do Francês no léxico português dos imigrantes: embora, que se saiba, não haja estudos sobre eventuais mudanças estruturais do Português em contacto com o sistema do Francês, pelo que nos é dado saber parece ser sobretudo o léxico que é afectado, estando nós perante casos de empréstimo por vezes adaptados
i) à fonologia do Português como em [uzin] por [yzin], usine, ou em [kofror) por [kofrœr], coffreur (as vogais [y] e [œ], [-rec, +arr], do Francês, que apresentam uma combinatória de traços inexistente em Português, são substituídas pelas vogais [u] e [o], [+rec, +arr], do Português. A consoante vibrante segue as leis, de distribuição das vibrantes do Português: [r] em grupo consonântico e em posição final);
ii) ou à morfologia como em [], copines, poubelles ou [biru], bureaux que apresentam o morfema de plural do Português (dados do Corpus Alsácia, recolhido em 1983-84 junto de portugueses imigrados naquela região de França; cf. Coelho da Mota, 1990).
No mesmo Corpus, e tentando agora exemplificar a existência de interferência estrutural da LO sobre a LA, consideremos a influência da morfologia do Português no Francês que os informantes falam - ao cabo de uma dezena de anos de contacto, a morfologia verbal e nominal do Francês falado por grande parte dos indivíduos entrevistados continua a não coincidir integralmente com a dos nativos do mesmo grupo social. Alguns exemplos poderão ilustrá-lo: das 3216 formas verbais atestadas no Corpus e analisadas, isolámos 919 que correspondem a 20 entradas lexicais (verbos) diferentes; destas 919 formas, 18% são normativas sendo as restantes 82% caracterizadas pelo facto de, na sua composição morfológica, entrarem lado a lado morfemas do Português e do Francês. Um exemplo, apenas, com o Imperfeito de pouvoir, 1ª pessoa [pude], por [puve], ou ainda do verbo connaître, 3ª pessoa [kunes-e], por [konese] em que o radical é o do verbo correspondente português [com eventual adaptação ao vocalismo do Francês - vogais baixas em posição átona ([e] do radical), quando em Português haveria elevação] e o morfema de tempo/modo é o do Francês. Este tipo de fenómenos, largamente representado no Corpos, corrobora a afirmação generalizada na literatura da especialidade sobre a dificuldade de adopção de características de nível morfológico da outra língua e, como corolário, sobre a previsível manutenção de traços morfológicos da LO, mesmo quando a sintaxe, por exemplo, está adquirida. A este tipo de influência de uma LO sobre uma LA chama-se, habitualmente, interferência. Do ponto de vista em que nos situamos, o do caso dos imigrantes de 1ª geração, falantes de Português em contacto com o Francês, essa interferência exerce-se pelo facto de os falantes em questão estarem a viver um processo de passagem de um estado de monolinguismo a um estado de bilinguismo. Por razões linguísticas, sociológicas e psicológicas, este tipo de população inicia o processo de mudança de língua (shift) o qual, no entanto, só se completará, em princípio, na 3ª geração (na 2ª geração, será ainda parcial). A 1ª geração de imigrantes é, salvo em casos-limite, caracterizada pelo bilinguismo. No entanto, até que se tornem bilingues estabilizados, digamos assim, um longo processo decorre: de um estado incipiente, caracterizado pela persistência de muitos traços da LO e da criação de formas analógicas e originais, o falante poderá passar, por hipótese, a um estado de avançada ou total separação dos sistemas das línguas envolvidas. Tal não significa, porém, que o sistema segundo, adquirido posteriormente, e o sistema primeiro, o de origem, coincidam totalmente com os dos monolingues num ou noutro sistema. O contacto deixa, sem dúvida, marcas em ambas as gramáticas.
Assim, de uma situação inicial de contacto, e consoante as condições em que ele se desenvolve, podem decorrer, grosso modo, dois quadros: criação de bilinguismo dos falantes (o que implica a manutenção da LO e influências dessa LO sobre a LA e vice-versa) ou abandono progressivo (em certos casos extremos, abrupto) da LO, por adopção da LA como única língua da comunidade.

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Maria Antónia Mota(1996). "Línguas em contacto", in Introdução à Linguística Geral e Portuguesa, Org. de Isabel Hub Faria, Emília Ribeiro Pedro, Inês Duarte, Carlos A.M.Gouveia, Ed. Caminho, Lisboa,(pp.509-513).


Uma consequência linguística particular do contacto:
a criação de novas línguas

O contacto de línguas pode originar, como vimos nas páginas anteriores, múltiplos resultados linguísticos, desde a morte de línguas até à criação de novas línguas, passando por situações intermédias de mixagem, de alternância, etc.
Um caso que merece especial atenção, por muitas razões entre as quais a do impacto que o seu estudo teve e tem no desenvolvimento da investigação em Linguística, é a da criação de novas línguas. Essas novas línguas - pidgins e crioulos - têm, de facto, sido objecto de estudo desde o século passado e estão na base da criação de um novo ramo da Linguística, a Crioulística. Schuchardt é considerado o fundador destes estudos; em Portugal, o primeiro texto de Crioulística é escrito por Adolfo Coelho, em 1880.

Pidgin é um termo cuja origem é discutida: há quem defenda que vem do Inglês business, com origem no Pidgin Inglês falado no litoral da China; do Português ocupação (transformada em pasang pelos chineses) ou pequeno (transformado em piken pelos africanos); do Hebreu pidjom (troca, comércio), etc. A primeira atestação do termo data de 1850 e refere-se ao resultado do contacto entre Inglês e Chinês (Tarallo e Alkmin, 1987: 80). De qualquer forma, pidgin teria começado por denominar os indivíduos de origem cultural e linguística diferenciada implicados em situações de comércio, passando depois a denominar a língua mista que falavam entre si, nessas situações.

O surgimento de pidgins não está associado a uma época histórica determinada: embora os
associemos geralmente a situações de contacto muito antigas, nomeadamente decorrentes da expansão dos povos europeus por volta do século XV, pidgins há que surgiram no século passado, como o Pidgin Havaiano, fruto da importação de mão-de-obra estrangeira para as plantações de cana-de-açúcar na América (Tarallo e Alkmin, 1987: 83-85).

Mühlhäusler (1986: 5) chama a atenção para o facto de os pidgins serem exemplos de um certo tipo de aprendizagem de uma língua não-materna, passando de "sistemas mais simples a mais complexos à medida que as necessidades comunicativas se tornam mais prementes. As línguas pidgin não têm, por definição, falantes nativos e constituem soluções mais sociais do que individuais, sendo contudo caracterizadas por normas de aceitabilidade".

Na actualidade, alguns linguistas consideram que as línguas mistas faladas pelos trabalhadores estrangeiros nos países de imigração são pidgins; na nossa opinião, tal designação é abusiva (haja embora processos e consequências desses processos que se podem aproximar dos verificados nos pidgins) visto que a caracterização de um pidgin não se esgota em termos linguísticos - os factores sociais e os objectivos de comunicação são factores iniludíveis para a sua caracterização, não sendo partilhados pelas situações de imigração. Por outro lado, os imigrantes, pelo facto de se encontrarem em situação de subordinação a um patrão e a uma "sociedade de acolhimento", como é usualmente chamada, têm necessidade de adquirir rapidamente a língua de supremacia, pelo que não estão criadas as condições necessárias ao estabelecimento de um pidgin. Há uma língua alvo a adquirir e os fenómenos linguísticos de mescla correspondem, neste caso, a fases intermédias de apropriação do novo sistema.

Crioulo, termo registado desde o século XVI, deriva de uma extensão do significado do nome português cria (de criar); designava, originalmente, "animal criado em casa" tendo sido depois aplicado aos escravos nascidos e criados numa colónia da América, por oposição aos nascidos em África. Posteriormente, passou a denominar qualquer indivíduo mestiço nascido naquele tipo de sociedade (caracterizada pela existência de escravatura, diferentemente do que acontece com o enquadramento social que proporciona a ocorrência de pidgins). Especializou-se, finalmente, como nome genérico das línguas faladas pelos indivíduos crioulos, nomeadamente na zona das Caraíbas e da África Ocidental, num primeiro momento, e depois em todas as zonas onde a sua formação ocorreu (Pacífico Sul, Oceano Índico, etc.).
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Maria Antónia Mota(1996). "Línguas em contacto", in Introdução à Linguística Geral e Portuguesa, Org. de Isabel Hub Faria, Emília Ribeiro Pedro, Inês Duarte, Carlos A.M.Gouveia, Ed. Caminho, Lisboa,(pp.524-525).

O crioulo de Cabo Verde

Nado e criado em Cabo Verde: um crioulo
de base portuguesa

Diz-se dos crioulos, como das pessoas, que a primeira condição da sua morte é terem nascido.
Dado que são línguas que desde a sua origem estão em contacto com uma ou mais línguas socialmente dominantes, os crioulos tendem a perder progressivamente as suas características próprias, podendo ser completamente assimilados por estas últimas ou deixar mesmo de ter falantes.
Assim aconteceu neste século com a maioria dos crioulos de base portuguesa da Ásia.
Cerca de 20 anos após a independência de Cabo Verde (1975) e a mais de 500 anos da sua descoberta (1460), o Cabo-Verdiano, que foi um dos primeiros crioulos de base portuguesa que se formaram na costa ocidental de África como resultado dos múltiplos contactos linguísticos desencadeados pelos descobrimentos portugueses nos séculos XV e XVI, persiste, no entanto, com grande vitalidade. É língua materna não só de toda a população residente no arquipélago mas também da maioria das comunidades emigrantes espalhadas pela Europa e pela América.

Embora a língua oficial seja o Português, em muitos contextos oficiais a língua crioula é naturalmente preferida, mesmo pelos governantes. Não é, no entanto, língua de instrução, e apesar de haver muitos documentos e obras literárias escritas em Crioulo, este não foi ainda normalizado nem dotado de uma ortografia.
Para tal contribuíram vários factores. Não só o estatuto subalterno a que foi votado na época colonial, em que chegou a ser proibido nos lugares públicos, mas também a imagem que a comunidade crioula tem de que a sua língua é excessivamente variável e de difícil descrição e de que a adopção de uma das variedades em detrimento das outras poderia ser mal aceite socialmente.
Como todas as línguas, o Crioulo de Cabo Verde tem as suas variantes regionais, sociais e estilísticas, particularmente a nível lexical e fonético.
A própria comunidade tem o sentimento de que existem duas grandes variedades regionais: a de Barlavento (Boavista, Sal, S. Nicolau, S. Vicente e Santo Antão) e, mais a sul, a de Sotavento (Maio, Santiago, Fogo e Brava).
Mas a imagem de alta variabilidade advém, ainda, de outros fenómenos que são específicos das línguas crioulas.
Derek Bickerton (no prefácio à obra de John Rickford, 87: xvii, xviii), referindo-se ao Crioulo de Base Inglesa das Guianas, chamava a atenção para esse facto, dizendo: "Seria impensável que alguém pudesse pedir a uma turma de estudantes italianos, franceses ou alemães a tradução de algumas expressões simples do quotidiano, como "eu estava sentado", e obtivesse, de vinte estudantes, treze respostas diferentes; pois foi exactamente o que me aconteceu nas Guianas (e todas as respostas estavam igualmente certas!). Mesmo sendo falante nativo ninguém possui uma chave mágica para este labirinto."
Uma das razões de tal labirinto, no caso do Crioulo Cabo-Verdiano como no de outros crioulos, é a inexistência de normas, nomeadamente gráficas, que constituem geralmente um travão à mudança linguística.
Outra razão, como vimos atrás, é o constante contacto com uma língua de prestígio e de ensino, como o Português era Cabo Verde, contacto esse desigual de ilha para ilha e de grupo para grupo, mas fonte sempre presente de empréstimos e de interferências que levam à constituição de um contínuo de variedades denominadas pelos próprios falantes como mais fundas (menos assimiladas) e mais leves (mais assimiladas). Não esquecendo motivos mais subjectivos, como a ideia antiga, induzida pelo menosprezo colonial e ainda presente em alguns espíritos, de que o crioulo não tem gramática ou é um mero dialecto do Português... E, mais ainda, as vicissitudes da própria história, tão divergente, de ocupação, povoamento e repovoamento das várias ilhas, tantas vezes assoladas por secas e fome devastadoras.
Este mundo labiríntico e fugidio de variedades (e de razões...) que não impedem a inteligibilidade mútua nem o sentimento comum de se falar a mesma língua em Cabo Verde e que são mais sinal de vida do que de morte, faz deste crioulo um desafio ao "abre-te Sésamo" dos linguistas, pelo conjunto de questões teóricas que permite considerar.


Um pouco de história

Da história das sua formação pouco se sabe. No primeiro século, após a ocupação, em 1462, do arquipélago de Cabo Verde, então deserto, não só não há, naturalmente, registos linguísticos, como escasseiam as informações quanto à origem e ao número, quer de europeus quer de africanos, na sua maioria escravos.
Só de uma forma indirecta podemos, pois, reconstituir o processo que lhe deu origem e assim contribuir para a compreensão deste fenómeno teoricamente tão interessante que é a criação de uma língua no curto espaço de algumas décadas.
Segundo os historiadores, e tendo como especial referência a recente História Geral de Cabo Verde (1991), das dez ilhas que constituem o arquipélago, Santiago foi a primeira a ser colonizada, logo seguida do Fogo. Santo Antão e S. Nicolau começaram a ser povoadas só depois de 1570 e as restantes, a partir do século XVII.
Santiago e Fogo funcionaram desde logo como entreposto dos escravos que eram resgatados numa área que ia desde a margem sul do rio Senegal ao rio Orange, especialmente nas regiões do rio Casamansa e do rio de S. Domingos e Rio Grande, na actual Guiné-Bissau.
Na sua maioria eram reexportados, não permanecendo aí mais de dois meses. Alguns, no entanto, eram aproveitados para os serviços domésticos, sobretudo em povoações como Ribeira Grande e Alcatrazes, que cedo passaram a ter uma vida social organizada. Mas o seu número só deve ter aumentado significativamente quando houve necessidade de os utilizar como mão-de-obra nas plantações, particularmente a partir de 1472, data em que uma carta régia determinou que só as mercadorias nativas poderiam ser comerciadas pelos moradores nas costas da Guiné, o que favoreceu a implementação do cultivo do algodão (principal moeda de troca no resgate dos escravos), nas terras do interior de Santiago.
Em 1582, Francisco de Andrade, sargento-mor de Santiago, escreve que no interior desta ilha já havia oito freguesias com uma população de "600 homens brancos e pardos e 400 pretos forros casados, os quais terão em suas fazendas de suas casas 5v [5000] escravos, 3v de confissão e os 2v que se ensinarão para isso." (Cit. por A. Correia e Silva, in História Geral de Cabo Verde: 232).
Mas uma referência marginal ao número de escravos ? 174 ? recebidos por um almoxarife (Afonso Anes do Campo) entre 1490 e 1493 mostra bem como muito mais cedo já deveriam os escravos estar em maioria.
Não afastando a hipótese de alguns dos escravos já terem adquirido na costa ocidental de África, antes de aportarem às ilhas, os "rudimentos da língua portuguesa", como se dizia na época, ou seja, uma forma pidginizada do Português, não há dúvida de que foi o contacto doméstico entre escravos e senhores, associado a uma forte miscigenação decorrente da quase ausência de mulheres brancas, e a estabilização e isolamento dos escravos de diferentes etnias nas plantações do interior que devem ter propiciado a formação de um pidgin, mais estável nas zonas litorais urbanizadas, assediadas pelos forasteiros em trânsito e pelos contingentes sempre renovados de escravos, mas rapidamente complexificado e crioulizado nas grandes propriedades rurais que se constituíram a partir de 1472.
Sabendo, também, que a partir de 1560 há uma retracção no fluxo dos colonos europeus, dos escravos e dos homens livres africanos, devido aos ataques dos piratas, à concorrência francesa e inglesa e à perda da importância comercial do algodão, podemos considerar que bastaram cerca de cem anos para a constituição e estabilização da sociedade crioula nas primeiras ilhas colonizadas e menos ainda para o desenvolvimento pleno da sua nova língua.


De onde vêm os crioulos?

Esta não é a pergunta mais interessante para um crioulista, empenhado no conhecimento exacto dos fenómenos linguísticos que caracterizam a reestruturação de uma forma de linguagem deficiente, como é um pidgin, e a sua transformação numa língua plena, num crioulo.
É, no entanto, uma pergunta de resposta relativamente mais acessível do que esta outra: como nascem os crioulos?
Como vimos atrás, nenhum documento autêntico nos pode dar luz sobre aqueles tempos em que, trazidos à força e às cegas das suas terras, os escravos, falando línguas diferentes, se viam obrigados, numa primeira instância, a aprender algumas palavras da língua dos senhores e a colá-las com gestos, para sua sobrevivência e cumprimento do seu destino de humanos. Também nenhum documento nos mostra como as gerações seguintes receberam de herança essa linguagem tão dependente do contexto e tão pouco económica e funcional e, recorrendo ao seu bioprograma para a linguagem, a souberam complexificar e expandir.
Mas no caso dos crioulos de base portuguesa tivemos a rara sorte de alguns autores como Fernão da Silveira (1455) e Anrique da Mota, ambos no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende (1516), e Gil Vicente (na Frágoa d'Amor, Não d'Amores e Clérigo da Beira), se terem interessado, na época, por aquelas formas novas de linguagem a que chamavam língua de preto.
Embora mascaradas pelo fingimento poético, emergem dos seus textos algumas falas que, se não são o retrato, são pelo menos um simulacro do que pode ter sido o pidgin de base portuguesa que esteve na origem de crioulos como o Cabo-Verdiano, como estes versos de Anrique da Mota, retirados de umas trovas dirigidas a "hum creligo sobre huua pypa de vynho que se lhe foy polo cham", e postos na boca de "uma preta":

- A mym nunca, nunca mym
entornar,
mym andar augoá jardim
a mym nunca ser rroym.
Porque bradar?

Pelo contexto, querem eles dizer: "eu não, eu não entornei (o vinho), eu estava a regar o jardim, eu não sou ruim. Por que grita (comigo)?"
A opção por formas mais proeminentes do ponto de vista fonético, como a forma dativa da primeira pessoa do pronome pessoal, mym, em vez de eu, e a negação nunca com o valor de não, bem como a ausência de flexões de tempo e pessoa no verbo (aqui representado pelo infinitivo) são marcas ainda hoje presentes no Cabo-Verdiano.
Falas como estas não são dados mas antes dádivas que cabe aos linguistas aproveitar de modo a tentar, através de hipóteses, preencher o vazio documental, como fez A. Kihm (1980) para o Crioulo afim da Guiné-Bissau.


De labirinto em labirinto

A partir do século XIX, passamos a ter acesso a alguns textos escritos em Crioulo de Cabo Verde, alguns deles forjados para satisfação da curiosidade dos estudiosos e investigadores como Adolfo Coelho ou Hugo Schuchardt.
Eis algumas "adivinhações" em Crioulo de Santiago enviadas por Sá Nogueira a Adolfo Coelho e por ele publicadas no Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, em 1880:

Xintido...................Mi li, mi la
(Pensamento..........Eu [estou] aqui, eu [estou] lá)
Sómbra..................ln córê in câ pêga, in xinta in pêga
(Sombra................. Eu corri eu não agarrei, eu sentei-me eu agarrei)
Sino.......................Sin câ pêga nha boi rábo ê câ tâ bônba
(Sino.....................Se não pegar no rabo do meu boi ele não berra).

Como ficou dito atrás, o Crioulo de Cabo Verde nunca foi dotado de uma grafia normalizada, pelo que quem escreve em Crioulo tenta normalmente representá-lo na grafia que domina, a portuguesa.
Por outro lado, não havendo instrução em Crioulo, o simples tacto de saber escrever revela que o falante em causa teve um contacto privilegiado com outra língua, o que torna o seu crioulo, sobretudo quando em situação de escrita, vulnerável à influência dessa língua.
Os textos do século XIX são, pois, bons documentos de uma faixa do Crioulo que, no contínuo, está mais próxima do Português, é mais "leve", ou, na terminologia linguística, mais acrolectal. Deste modo, embora fornecendo dados cronologicamente mais antigos, eles não são a melhor fonte para a reconstituição dos estádios mais recuados do Crioulo, mais próximos das suas origens.
Assim sendo, paradoxalmente, parece ser mais fácil procurar esses estádios nos tempos de hoje: nas ilhas de colonização mais antiga, como Santiago e Fogo, e junto dos falantes mais idosos, sem instrução, das zonas rurais do interior, onde foi menor o contacto com o Português. Esses são os falantes de Crioulo mais "fundo" ou basilectal.
Mas, sobretudo, é indispensável procurá-los nos discursos orais e no contacto directo com os falantes, em situações informais, como Baltasar Lopes, na elaboração de uma das primeiras obras descritivas do Cabo-verdiano (1957), foi dos primeiros a intuir.


Sem sombra de pecado

O interesse pelas origens do Crioulo de Cabo Verde, como de outros crioulos, ou ainda pelo estudo das variedades mais antigas e mais afastadas da língua de contacto, não tem como móbil o desejo saudosista de recuperar "os bons velhos tempos" e assim travar a evolução do Crioulo e a sua possível descrioulização.
A esse fenómeno que existiu, nomeadamente logo após a independência, em alguns grupos e indivíduos socialmente mais empenhados que tentaram reactivar formas mais antigas e fundas de Crioulo, dá-se o nome de recrioulização.
Nessa altura, alguns jovens mostravam o seu remorso de já não saberem falar o "bom" crioulo, o crioulo "puro", e procuravam aprender as formas lexicais dos mais velhos, tentando, por exemplo, substituir formas mais "leves" como múzika (música), pasensia (paciência), durmi (dormir), pelas suas variantes mais antigas como muzgu, pachencha e drumi, respectivamente.
Mas a recrioulização é um processo que depende dos falantes e a eles pertence.
Para o linguista, todas as variedades do Cabo-Verdiano, mesmo as mais próximas do Português, são Crioulo, "sem sombra de pecado".
O seu empenho, enquanto crioulista, no estudo dos estádios mais antigos da língua decorre do seu interesse teórico pelo "momento original", da complexificação e expansão de um pidgin e sua transformação em Crioulo.
A menos que a sua investigação se centre no estudo das consequências linguísticas do contacto, tanto ao nível dos sistemas como da produção individual, e, nesse caso, serão as variedades mais "leves" a fornecer os dados mais interessantes.
Consideremos um aspecto do Crioulo de Cabo Verde sob essas duas perspectivas.


Duas faces: a mesma moeda

Como vimos atrás, uma das características típicas de um pidgin é a ausência de flexões verbais (v. augoá, por exemplo). Essa característica permanece após o processo de crioulização e pode mesmo ser considerada regular nos crioulos. Só que estes, ao contrário do que acontece nos pidgins, ao reestruturarem o sistema verbal, elegem um conjunto restrito de informações de tempo, de modo e de aspecto e codificam-nas, recorrendo a um número igualmente restrito de morfemas, quase sempre livres, associados ao verbo. Neste subsistema, como noutros, a opção pela codificação de certas distinções semânticas, e não outras, pode ser reveladora do modo como opera o bioprograma para a linguagem humana.
A actual variedade santiaguense do Crioulo Cabo-Verdiano não foge à regra e os seus verbos apresentam uma forma invariável. Só os verbos e (ser) e ten (ter) têm formas irregulares.
Precedendo a forma verbal, podem ocorrer os morfemas de aspecto (O [+pontual], ta [- pontual] e sa [+cursivo]) e de modo (al [+irrealis]). O morfema de tempo [+anterior], -ba, é posposto ao verbo.
De uma forma simplificada, dadas as exigências do presente texto, e sem considerar as possíveis combinações com verbos auxiliares e seus respectivos morfemas de tempo, modo e aspecto, podemos exemplificar o sistema básico acima descrito recorrendo a um verbo não estativo como kanta (cantar):

e kanta (ele cantou)
es kanta (eles cantaram)
e ta kanta (ele costuma/sabe cantar; ele vai cantar)
e sa ta kanta (ele está a cantar; ele vai cantar)
e kantaba (ele tinha cantado; ele estava a cantar; ele cantava).
e al kanta (ele há-de cantar).

A esta simplicidade de meios morfológicos corresponde, pelo contrário, em certas variedades do Crioulo de S. Vicente, ilha que só foi povoada a partir de 1795, um maior número de verbos com formas irregulares flexionadas em tempo e modo, embora ainda não em pessoa nem em número.
É o caso de verbos como e (ser), esta (estar), kre (querer), sabe (saber), pode (poder), que podem assumir formas tão variáveis como, respectivamente,

e, era, foi, fose
esta, estava, estive
ten, tiver, tive, tivese
kre, kizer, kria, kris
sabe, sabia, subese
pode, puder, podia, pude, pudese,

com uma semântica muito próxima da das formas portuguesas correspondentes.
Do mesmo modo, o verbo ten (ter) passa a funcionar nestas variedades como um verbo auxiliar que se constrói, como em Português, com o verbo principal no particípio passado:

el tinha kmide (ele tinha comido)
el ten kmide (ele tem comido).
s'el tiver kmide (se ele tiver comido)
s'el tivese kmide (se ele tivesse comido).

Todas estas formas são mais recentes e entram em conflito com outras variantes não flexionadas do Crioulo de S. Vicente, por vezes coincidindo e alternando com elas no discurso do mesmo indivíduo.
São um bom campo de análise dos processos de mudança linguística por aculturação, pois permitem, entre outros aspectos, determinar as classes de verbos que são primeiro afectadas (aparentemente a classe dos verbos estativos) e o tipo de distinções que, progressivamente, vão sendo apropriadas a partir do modelo fornecido pela língua de contacto e formalmente introduzidas no sistema crioulo.
Na variedade de Santiago, essa mudança não se verifica, excepto no caso particular da comunidade de emigrantes radicados em Portugal.
Às expressões com o auxiliar ten acima referidas correspondem, respectivamente, as seguintes:

e kumeba ou e kume
e ta kume
si e kume
si e kumeba.

Perante este contraste, e tendo em conta a semelhança entre as formas verbais flexionadas e o sistema português, é naturalmente nas variedades "fundas", de limites tantas vezes fugidios, que se buscam as raízes e as características que fazem dos crioulos línguas como as outras, mas afinal diferentes.
Desse crioulo mais "fundo" fica aqui um pequeno testemunho de uma mulher de quase oitenta anos, do Tarrafal (Santiago), magoada com a insustentável leveza dos tempos que correm:

Sabru ki pasa tinha konjuntu tchuba toma kaminhu.
No sábado passado havia conjunto e a chuva apareceu.

Ami konjuntu ki N ka konche desdi ki ta fladu
Eu conjuntos é coisa que não conheço desde que se diz

ma konjuntu ten. E pa po badju mas é pa N ba
que há conjuntos. E para porem baile mas é para eu ir

ku dinheru pa N pode dechadu kanba. N ka ta dechadu
com dinheiro para me deixarem entrar. Não me deixam

kanba, N ka ta bai. [...] Ago odju é pa ta djobe,
entrar eu não vou. [...] Ora os olhos são para olhar,

boka é pa ta papia, chintidu é pa ta pensa.
a boca é para falar, o pensamento é para pensar.

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Dulce Pereira (1996). "Línguas em contacto", in Introdução à Linguística Geral e Portuguesa, Org. de Isabel Hub Faria, Emília Ribeiro Pedro, Inês Duarte, Carlos A.M.Gouveia, Ed. Caminho, Lisboa,(pp.551-559).