Vi de novo o Artur Anselmo a colocar o Acordo Ortográfico entre aspas. Sempre pensei que o dito documento é um texto legal aprovado no nosso parlamento. Por isso, não entendo onde estão as aspas: na validade legal (inconstitucionalidade?), no acordo (seria um desacordo?) ou no adjetivo “ortográfico” (seria antes um acordo disortográfico?). Enfim, cabe ao presidente da Academia das Ciências de Lisboa, a instituição que nos pôs este tratado nas mãos, dizer porque põe aspas no trabalho dos seus colegas.
Mesmo que o novo presidente da academia tenha votado de vencido, não sei como foi, não me interessam as questões internas da dita organização nem a posição pessoal anterior de Artur Anselmo, o que é certo é que foi a sua instituição que produziu este objeto em 1990. Então para mim, pessoa de fora que só vê a instituição e se desinteressa dos elementos que a constituem, é a Academia de Ciências de Lisboa que se vem arrepender 26 anos depois do acordo entre aspas ter sido concluído.
A comentar a ida ao parlamento do referido desacordado presidente, vimos Francisco José Viegas a esclarecer-nos com as perguntas do jornalista. Seria correto que escrevêssemos como falamos? Claro, essa é a tendência atual desde a década de 70 (foi o que me pareceu ouvir), em muitas línguas.
A primeira dúvida é o que significa “escrever como se fala” no que à ortografia diz respeito. É que pôr a questão nestes termos parece-me diferente de perguntar qual é o lugar da etimologia na ortografia, isto é, se os elementos ortográficos que deixaram de ter qualquer função devem ou não continuar a fazer parte da grafia das palavras.
Numa primeira interpretação, a palavra “casa”, tanto poderia ser escrita com “s” como com “z”. Ora, isso nunca esteve em causa. A palavra “mesmo”, poderia ser escrita assim “mejmo”, já que o “s” nessa posição, antes de uma consoante sonora, palatiza-se e sonoriza-se. As formas do plural, entre nós, poderiam acabar em “ch”. “Vamos passear”, seria grafado assim: “vamoch passiar”, mas não em “vamos à escola”, porque neste contexto o “s” sonoriza-se mas não se palatiza. Enfim, a ortografia seria uma espécie de transcrição fonética.
Como não é isso que está em questão, acho errada a formulação “escrever como falamos”. Quanto à etimologia, José Viegas foi buscar o estafado exemplo Egito/egípcio. Como o próprio mostrou o “p” aparece magicamente numa palavra derivada. No oral, estamos perante um facto: o “p” caiu, em “Egito”, mas não caiu em “egípcio”. O que os partidários da ortografia etimológica querem é que o “p” morto na oralidade permaneça na escrita. Para manter a coerência morfológica, não deveria continuar lá? A verdade é que o étimo que é o mesmo passou na diacronia a ser representado por dois alomorfes “egipc” e “egit”, pois, na verdade, as palavras têm história independente: “Egito” deriva do latim “aegyptus” e “egípcio” de “aegyptius”. Num contexto, “pt” passou a “t”, noutro, passou a “pc”. Portanto, não somos nós que aplicamos um sufixo para formar uma nova palavra.
O princípio da prioridade do fonológico sobre o etimológico na ortografia não é recente, como Francisco José Viegas pretendeu mostrar, mas secular. Já Gonçalves Viana e Vasconcellos Abreu na sua Ortografia Portuguesa de 1885, propunham o fim de todos os símbolos gráficos sem valor: th (por exemplo, thermómetro), ph (etnographia), ch (por exemplo, chimica, machina, mechanica), y (lyrio, physica), mudanças que vieram a concretizar-se em 1911.
In Sem Rede
Luís Filipe Redes