O vice-presidente da direção publicou, em nome da APP, o artigo «O perigo de ler livros», na revista L/Atitude, n.º 37, da DGAE, publicada em maio de 2024. Nesse texto, a partir de uma epígrafe de Schopenhauer, citado por Pedro Eiras, faz o balanço geral das XI Olimpíadas da Língua Portuguesa e uma reflexão sobre os resultados dos alunos, numa série longa de resultados, entre 2011 e 2021, a partir dos dados da avaliação interna e de estudos internacionais, como o PIRLS 2021 e o PISA 2022, para concluir sobre o que os professores de Português, as escolas, a Associação de Professores de Português – e implicitamente a tutela – podem fazer para «responder de forma mais robusta, consistente e sistemática a uma certa resiliência de maus resultados», de modo a transformarmos o que o filósofo alemão considerava ser o perigo de ler livros na festa que é o prazer de ler numa bela língua pluricêntrica.
A convite do JL, que pediu um balanço do ano letivo, nos seus aspetos positivos e negativos, João Pedro Aido, em nome da direção, publicou o texto «Tragédias e recompensas», no jornal do dia 10 de julho. Infelizmente, o texto, que é uma síntese do publicado na revista L/Atitude, surgiu truncado, sem epígrafe nem nota de rodapé, de modo que o republicamos aqui:
Tragédias e recompensas[1]
Sei precisar com exactidão o ano do meu primeiro contacto com a literatura da Antiguidade Clássica. Sei-o não porque tenha uma memória prodigiosa – os deuses não me bafejaram com essa graça –, mas porque guardo desde então um documento datado que mo atesta. Decorria o ano de 2002, eu era um adolescente de 17 anos a arrastar a carcaça lânguida pelas salas frias da escola secundária da minha terra, e uma professora digna desse nome – uma autêntica raridade –, apercebendo-se de que o meu mau comportamento, a minha displicência e o meu desinteresse generalizado não impediam o florescimento de uma paixão incomum pela literatura, decidiu iniciar-me em leituras que ela esperava – e com razão – que me pudessem ajudar naquela fase tão crítica da minha vida.
Moita, João (2023). O Trágico – Sacrifício sem Recompensa. In C. Pimentel, & P. Morão (Coords.), A Literatura Clássica ou os Clássicos na Literatura. Presenças Clássicas nas Literaturas de Língua Portuguesa (vol. VI, p. 411). Colibri.
Em 2023/24, no ano da celebração dos 500 anos do nascimento de Camões, as XI Olimpíadas da Língua Portuguesa, organizadas pela APP, foram o pretexto para uma festa – com a participação de mais de 12500 alunos de Portugal, das regiões autónomas e de Escolas Portuguesas no Estrangeiro, em Angola, Cabo Verde, Macau, Moçambique e S. Tomé e Príncipe, correspondentes a mais de 250 agrupamentos de escolas e escolas não agrupadas.
No entanto, se olharmos para os resultados de todos os alunos, numa série longa de resultados, entre 2011 e 2021, constatamos, apesar da melhoria consistente e global, que há enviesamentos geográficos significativos, para lá do efeito das diferenças de género e da situação económica das famílias.
Esse efeito de enviesamento revela-se também no estudo digital PIRLS e no estudo internacional PISA, em 2022, na literacia de leitura, em que os cerca de sete mil estudantes portugueses obtiveram 477 pontos, o que representa uma descida de 15,2 pontos em relação a 2018. Apesar de essa descida ser previsível, e acompanhar a descida média dos países da OCDE, existem outros fatores, além do impacto da pandemia nas aprendizagens e das discrepâncias regionais, como o efeito das retenções e o estatuto socioeconómico das famílias, que nos poderão mostrar um caminho para um ensino de maior qualidade, se quisermos que o nosso sistema educativo aprenda com estes estudos internacionais (mas é importante realçar, apesar do enviesamento produzido ao compararmos um subconjunto com um universo, que os nossos alunos sem retenções, que são 80%, tiveram um desempenho em leitura ao nível dos melhores países do mundo, ou seja, perto ou acima dos 543 pontos obtidos por todos os alunos de Singapura, o país mais bem classificado no estudo PISA).
Por outro lado, considerando os dados do relatório sobre as práticas de leitura[2], no contexto em que cerca de 35% dos alunos nunca ou raramente leem livros (p. 42) e em que a escola não sabe muito bem o que fazer, nomeadamente em termos de literacia de leitura, com os alunos que ficam retidos nalgum ano, bem como com os alunos com medidas seletivas e adicionais ou que nem sequer têm o português como língua materna, e sabendo que há um distanciamento face à biblioteca escolar dos alunos com poucos livros em casa, neste contexto global, a escola tem respondido com uma baixa exposição a atividades de leitura e de escrita nas aulas de Português.
Tudo isto ocorre num contexto de insuficiência de professores de Português e em que parece não haver capacidade instalada no ensino superior para responder rapidamente a esta necessidade urgente. Além disso, o sistema educativo não consegue atrair os melhores alunos do secundário para a profissão, num quadro em que o desempenho dos professores é determinante para o sucesso dos alunos e o perfil de formação dos professores portugueses, e de Português, em particular, é pouco exigente e problemático (os melhores alunos não seguem esta profissão e muitos jovens vêm de escolas privadas, que inflacionam as notas), o que cria uma situação de ‘tempestade perfeita’. Acresce a isso o facto de a rotatividade dos professores tender a ser mais elevada nas escolas em que os alunos têm notas mais baixas nos exames nacionais e têm um estatuto socioeconómico mais desfavorecido, o que pode explicar, pelo menos em parte, as grandes assimetrias regionais que os resultados dos alunos revelam e o estudo PISA confirma.
Nesta situação de ‘tempestade perfeita’, sabemos, no entanto, que as atividades relacionadas com a leitura e a escrita desenvolvidas em sala de aula têm um impacto efetivo nas práticas de leitura dos alunos (id., ibid.). Uma recompensa e uma resposta robusta a estas dificuldades, como a epígrafe do poeta João Moita mostra exemplarmente, passa pelo papel insubstituível dos professores, e por isso a falta de docentes constituiu, em 2023/24, a principal tragédia do nosso sistema educativo e o mais exigente desafio para a tutela e para uma organização como a APP, que tem desenvolvido, et pour cause, planos estratégicos para o ensino do Português, reflexões sobre as diferentes variedades da língua nas salas de aula e na avaliação externa e, entre outros, projetos de apoio aos professores mais jovens que previsivelmente vão entrar nos próximos anos no sistema educativo.
Lisboa, 2 de julho de 2024
Direção da Associação de Professores de Português
Fonte da imagem aqui.
[1] Síntese da reflexão «O perigo de ler livros», publicada na revista L/Atitude, n.º 37, 2024, editada pela DGAE.
[2] Mata, João Trocado da, & Neves, José Soares (Coords.) (2020). Práticas de Leitura dos Estudantes dos Ensinos Básico e Secundário – Primeiros resultados. PNL/ISCTE.