A autora tinha sido galardoada, entre outros, com o Prémio de Língua Francesa (2008), o Prémio Marguerite Yourcenar (2017), o Prémio Formentor de las Letras (2019) e o Prémio Prince Pierre do Mónaco (2021).
Do conjunto da sua obra publicada em português, destacam-se os livros Um Lugar ao Sol (1984), vencedor do Prémio Renaudot, Os Anos (2008), vencedor do Prémio Marguerite Duras e finalista do Prémio Man Booker Internacional, Uma Paixão Simples (2020) e O Acontecimento (2022).
Na obra-prima Os Anos, Annie Ernaux conta uma história intimista, pessoal e coletiva, que representa simultaneamente a vida de uma mulher, ao longo de sessenta anos, e a vida do próprio país, e que é um trabalho sobre a memória e sobre a recuperação de memórias individuais e coletivas que a sua escrita precisa e acessível recupera do esquecimento – a partir de pequenos fragmentos narrativos, eventos da história, o que fica do tempo que passa ou a partir, por exemplo, de objetos, fotografias, canções, filmes, recordações pessoais.
Três exemplos sobre o nada que fica, a língua dilacerada e os rapazes e raparigas do seu tempo (do nosso tempo):
O nada que fica, p. 16:
Tudo se apagará no segundo. O dicionário acumulado desde o berço até ao leito de morte irá desaparecer. Depois, o silêncio e nenhuma palavra para o dizer. Da boca aberta nada sairá. Nem eu nem mim. A língua continuará a pôr o mundo em palavras. Nas conversas à volta de uma mesa em dia de festa seremos apenas um nome, cada vez mais sem rosto, até desaparecermos na multidão anónima de uma geração distante.
A língua dilacerada, p. 26:
A língua, um francês dilacerado, misturado com patoá, era indissociável das vozes possantes e vigorosas, dos corpos apertados nos fatos de trabalho e nódoas negras, das casas com quintal, do latido dos cães durante a tarde e do silêncio antes das discussões, tal como as regras da gramática e o francês correto estavam associados às entoações neutras e às mãos brancas da mestra amada na escola. Uma língua sem louvores nem lisonjas, que continha em si a chuva forte, as praias de seixos cinzentos sob os despenhadeiros das falésias, os baldes da noite deitados no estrume e o vinho dos trabalhadores braçais, era uma língua que veiculava crenças e prescrições…
Rapazes e raparigas, p. 33:
Rapazes e raparigas mantinham-se separados em todas as circunstâncias. Os rapazes, seres barulhentos, sem lágrimas, sempre prontos a atirar com qualquer coisa, pedras, castanhas, petardos, bolas de neve duras, diziam palavrões, liam o Tarzan e Bibi Fricotin. As raparigas, que tinham medo deles, eram ensinadas a não os imitar, a preferir os jogos calmos, a roda, a macaca, o anel. No inverno, à quinta-feira, brincavam às escolas com botões velhos ou recortavam figuras de L’Écho de la Mode, que dispunham em cima da mesa da cozinha. Encorajadas pelas mães e pela professora[,] eram mexeriqueiras, «vais ver, vou contar!» era a ameaça predileta. Chamavam umas pelas outras dizendo «ó coisa!», ouviam e repetiam com vizinhos histórias malcriadas, com a mão sobre a boca, riam à socapa e discretamente com a história da Maria Goretti que tinha preferido morrer a ter de fazer com um rapaz aquilo que elas próprias há tanto desejavam poder fazer, assustavam-se com essa forma de perversidade, insuspeita aos olhos dos adultos. Desejavam ter seios e pelos, uma toalhinha com sangue nas cuecas. Enquanto esperavam, liam os álbuns de Bécassine e Os Patins de Prata de P.-J. Stahl, Em Família de Hector Malot, iam ao cinema com a escola ver São Vicente de Paulo, Le Grand Cirque e A Batalha do Rail, que elevavam a alma, davam coragem e repeliam os maus pensamentos. Mas elas sabiam que a realidade e o futuro estavam nos filmes de Martine Carol, nas revistas cujos títulos Nós Dois, Confidências e Intimidade anunciavam a desejável e proibida luxúria.
Ernaux, Annie (2020). Os Anos. Livros do Brasil.
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