«Desde a invasão da Ucrânia, a 24 de fevereiro de 2022, além do boicote legítimo às relações económicas com a Rússia, assistiu-se a um cancelamento cultural da Rússia, dos seus autores, dos seus músicos, das suas orquestras, companhias de bailado. A russofobia transbordou as dimensões políticas, assumindo que qualquer expressão cultural russa, por distante, ou mesmo contrária ao conflito, teria de ser reconhecida como agressora e sofrer as consequências.
Desde o ataque do Hamas a 7 de Outubro, defender alguma posição que não seja de cabal adesão à acção de Israel em Gaza traz, em muitas latitudes e contextos, a consequência de um cancelamento. Por exemplo, no final de 2023 era notícia o cancelamento de uma exposição de uma fotógrafa na Alemanha, por se ter posicionado criticamente face à ocupação da faixa de Gaza pelas forças militares de Israel. Por estes dias, quatro pessoas, três delas cidadãs europeias, arriscam a deportação da Alemanha por serem activistas envolvidos em protestos pró-palestina, apesar de não terem cometido nenhum crime.
No mundo do espectáculo, já este ano, assistiu-se ao cancelamento de Karla Sofía Gascón, a actriz espanhola transgénero do filme Emília Pérez, depois de reveladas tomadas de posição de há alguns anos em que agenciava evidente discurso preconceituoso. O lançamento do seu livro foi cancelado, bem como a sua participação em acções de divulgação do filme cujo elenco integrou.
São muitas as razões que animam a acção de cancelar culturalmente alguém, vontades políticas, umas a inscreverem-se no campo da emancipação das minorias (por exemplo, por cá, o cancelamento do sociólogo Boaventura de Sousa Santos, depois das sérias acusações de assédio sexual, assunto a que voltarei adiante), outras no campo de uma espécie de revanche contra todas as expressões culturais empenhadas na diversidade e na inclusão.
Em Portugal, graves tentativas de impedir que livros com temáticas desta natureza sejam publicados, lançados e vendidos em livraria têm sido perpetradas pelo movimento Habeas Corpus.
O cancelamento em prol do desmantelamento de programas de diversidade, tendo começado pela esfera cultural, hoje já a excede. Além do cancelamento cultural, a “guerra cultural” determina também cancelamentos económicos. Ainda há dias foi notícia que a embaixada dos EUA está a enviar cartas a empresas portuguesas com negócios nos EUA para abdicarem de “políticas de diversidade, equidade e inclusão”.
O cancelamento em prol do desmantelamento de programas de diversidade, tendo começado pela esfera cultural, hoje já a excede. Além do cancelamento cultural, a “guerra cultural” determina também cancelamentos económicos. Ainda há dias foi notícia que a embaixada dos EUA está a enviar cartas a empresas portuguesas com negócios nos EUA para abdicarem de “políticas de diversidade, equidade e inclusão”.
Só para dar uma ideia, a EDP e a TAP, bem como boa parte dos bancos portugueses, têm nos seus respectivos sites políticas de diversidade, equidade e inclusão. Vamos deixar de poder voar na TAP para os EUA? Já não bastava a certeza de que os telemóveis e portáteis vão ser vasculhados nos serviços de fronteira dos aeroportos norte-americanos.»
André Barata (2025). Cancelar é censurar. Jornal Económico em linha, 8 de abril de 2025.
O filósofo André Barata apresentou o texto «Censura, Autocensura, Cancelamento» na introdução ao encontro «Há muitas formas de proibir um livro», sobre censura, autocensura e cancelamento no universo do livro e da leitura, que teve lugar no dia 8 de abril, no Goethe-Institut, em Lisboa, e em que a APP esteve representada.
André Barata é professor catedrático na Universidade da Beira Interior, onde dirige, presentemente, a Faculdade de Artes e Letras. No âmbito da investigação científica, coordena a Unidade de Investigação Praxis – Centro de Filosofia, Política e Cultura. Preside, ainda, à Sociedade Portuguesa de Filosofia. Os seus interesses académicos circulam pela filosofia social e política e pelo pensamento fenomenológico e existencial. Assina regularmente colunas no Jornal Económico e no Público. É autor de vários livros de ensaio e, mais recentemente, publicou na Documenta uma trilogia: E se parássemos de sobreviver – Pequeno livro para pensar e agir contra a ditadura do tempo (2018); O desligamento do mundo e a questão do humano (2020) e Para viver em qualquer mundo – Nós, os lugares e as coisas (2022).
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