«Ao falar, convertemos o nosso corpo num instrumento musical. Comunicamos criando sonoridades na corrente de ar que sai dos pulmões, atravessa a laringe, vibra nas cordas vocais e adquire a sua forma definitiva quando a língua acaricia o céu da boca, os dentes ou os lábios. Todos estes órgãos intervêm no momento certo para moldarem as nossas frases. E, embora a língua não possa por si só criar a fala, é o seu símbolo desde a Antiguidade. Por isso, dizemos «Tem a língua afiada» ou «O gato comeu-lhe a língua». Língua significa as duas coisas: o músculo e o idioma, a carne e a palavra, o órgão animal e a comunicação que nos torna humanos.
A língua é uma parte fascinante da anatomia. As borboletas desenroscam a sua comprida língua para beberem nas flores como em cálices e os colibris usam as suas para beijá-las em pleno voo. O camaleão lança a sua língua a uma distância maior do que o seu próprio corpo. A dos seres humanos alberga as papilas gustativas que permitem saborear inúmeros prazeres. Quando nos concentramos, a ponta da língua espreita pelos lábios entreabertos, como que querendo ir ao encontro da realidade exterior. E, nessa procura de protagonismo, a nossa pequena língua, tomando a palavra, modelando o ar, conseguiu atuar no mundo e, com as suas verdades e mentiras, mudá-lo para sempre.»
Irene Vallejo (2023). Alguém falou sobre nós (p. 27, «Jeito para línguas»). Bertrand Editora.
Fonte da imagem aqui, num texto em que Guilherme d’Oliveira Martins refere que
«E não diz Irene Vallejo que Aspásia de Mileto foi quem escreveu muito provavelmente o mais célebre dos discursos de seu marido Péricles? E não podemos esquecer que o primeiro país que erradicou o analfabetismo foi a Noruega, por ter proibido o casamento de mulheres analfabetas, para que se não perdesse a leitura da Bíblia, necessária ao luteranismo, e a oralidade da comunicação familiar. Mas não estamos apenas no campo do sublime, uma vez que os livreiros foram ao longo dos tempos tantas vezes vítimas da sua própria coragem e do risco de vida, ao publicarem obras polémicas, ao abrigo da liberdade de pensamento e de expressão. Quantos não perderam a vida apenas para concretizarem a liberdade, a autonomia e a dignidade humana. Desde os versos de Homero à Biblioteca de Sarajevo, encontramos o essencial da história humana. A ficção e o ensaio andam paredes meias. Se Montaigne tem uma capacidade única de se dirigir ao leitor, de tu a tu, As Mil e Uma Noites são uma cadeia interminável de relatos que permitem entender a complexidade da vida e do género humano. Daí que O Infinito num Junco seja uma verdadeira arqueologia do saber e das ideias, cuja matéria-prima é feita de memória humana, em toda a sua complexidade. São as Humanidades que encontramos na sua vitalidade plena, quando vislumbramos a eternidade num fresco da Vila dos Papiros em Herculano.»