«Patrícia: Eva Lopo de A Costa dos Murmúrios (1988) ou Ana Maria Machado de Os Memoráveis(2014) ou, mais ainda, Milene de O Vento Assobiando nas Gruas (2002), são figuras vencidas, ou pelo menos diminuídas. No entanto, elas transmitem uma sensação de glória, uma glória invisível…
Lídia Jorge: Gosto da designação de vencidos não medíocres atribuída a esse tipo figuras. As minhas personagens femininas poderiam ser consideradas, contraditoriamente, como perdedoras excelentes. Este tema levou-me a ter trocas de impressões muito interessantes com Agustina Bessa Luís, por oposição. Eu não me sinto inclinada a escrever sobre mulheres poderosas, prefiro escrever sobre figuras que têm um poder de olhar desmistificador. Podem ser vítimas, podem interpretar atos sacrificiais, podem desejar trocar as suas vidas pela obtenção de um bem para os seus, ou por uma causa, como a velha Ana Mata, em O Vento Assobiando nas Gruas, que oferece a sua vida ao mar, numa atitude de superstição primitiva, para salvar os seus. Não o faço deliberadamente, mas porque a escrita me conduz a essas figuras, porque delas ressalta um conhecimento de que eu própria necessito. Ao construir esse tipo de personagens, eu não as concebo enquanto vítimas, mesmo que no código comum o possam parecer. Elas apenas perpassam por instrumentos de definição que lhes conferem o poder de vencer a vida. Isso é muito importante porque resgata alguma coisa que as mulheres escondem, a ideia de uma oferta generosa e absoluta que não está suficientemente escrita.
Além disso, naturalmente, o que faço inscreve-se na perspetiva da desmistificação da história oficial e masculina, mas também na convicção de que o triunfo da perspetiva poética é um passo para a justiça. Acredito que há um plano na poética, na criação da fábula, que reclama uma justiça e que só ela pode reclamar. Um equilíbrio que acontece fora da perspetiva banal do happy ending. Na verdade, não é preciso existir qualquer final feliz porque a fábula labora sobre o oxímoro: ao apresentar um insucesso, reclama por oposição, um sucesso. E depois existe o desejo na Literatura como em qualquer Arte, a ambição de alcançar uma totalidade de experiências, ser tudo e todos em toda a parte: velhos, novos, o lobo, o arvoredo, o mar, ou até a parede de uma casa, que vê passar gerações, e ela ali a observar a passagem do tempo. Por isso, sendo mulher, imagino como é ser homem, e também quero ser garoto e adolescente, mas conheço melhor as mulheres do que os homens, sobretudo por afinidade de corpo, e o corpo é a centelha densa do espírito. Assim, há uma simpatia biológica que promove a sintonia, e uma condição histórica que promove a compaixão e a demanda da justiça.»
Lídia Jorge (2022). A literatura, uma arte triunfal. Entrevista a Lídia Jorge. Buala em linha, 20 de maio de 2022.
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Lídia Jorge, que defende que «Não há livro de instruções para salvar a vida: só a literatura se aproxima desse imenso livro», é o Prémio Pessoa de 2025.
A 39.ª edição do mais importante galardão atribuído em Portugal distingue pela primeira vez uma romancista. Neta de uma camponesa algarvia, é a sétima mulher até agora premiada.