«As línguas não se alteram por mero decreto. Quando chega o decreto, já elas mudaram há meio século. A Lei de Lavoisier aplica-se à língua que nem ginjas. Nela, nada se perde, e mesmo o que se ganha transforma-se. Colunistas de jornal e puristas da língua que ainda tomam antiácidos para sobreviver ao acordo ortográfico (AO) de 1990 insurgem-se contra pessoas como eu, que desonram o português escrevendo como querem. Com e sem AO. Uma misturada. Lembram os velhotes obcecados em contar sempre a mesma história. É importante para eles, mas já ninguém os ouve. Não será desprezível lembrar que o uso da língua reflete posições e ambições de poder que ninguém quer perder.»
Isabela Figueiredo (2024). Eu fazer, tu fazer, ele fazer. Expresso em linha em 14 de novembro de 2024.
Neste artigo, a autora de A Gorda, romance vencedor do Prémio Urbano Tavares Rodrigues, Um Cão no Meio do Caminho e, entre outros, Caderno de Memórias Coloniais, cuja edição francesa foi finalista do Prémio Femina Estrangeiro, refere ainda que «A este propósito, há uma história que gosto de contar: há quase década e meia, data da entrada em vigor do AO, os meus alunos, que invariavelmente se esqueciam de usar as consoantes mudas em “redacção” e “epiléptico”, insurgiram-se quando elas caíram. Sobretudo os que davam mais erros. Como era possível que tivessem de deixar de usar uma regra que nunca cumpriram? Diverti-me com isto, em silêncio. Escrevia-lhes no quadro “redacção”. Pedia que lessem. Liam redação. Segundo passo: escrevia “redação”. Liam redação. Qual a diferença, perguntava. “Como reagem quando leem banda desenhada brasileira? Esta alteração prejudica a mensagem?” Silêncio.
Avento uma explicação: a aquisição das regras gráficas de uma língua confere um estatuto social e cultural. Quem escreve de acordo com as regras pertence automaticamente a uma elite bem escrevente, com os privilégios sociais que daí advêm. Nunca lho tinham dito, mas inconscientemente sabiam-no. Absorveram-no informalmente.
Claro que os brasileiros se riem dos nossos pruridos linguísticos. Os brasileiros e todos os africanos e timorenses que usam a língua, que é deles, como lhes serve melhor. Agrada-me que a língua portuguesa pareça uma grande manta de croché que vai crescendo com malhas e desenhos diferentes, partindo de uma mesma técnica.»
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