«Os seus livros anteriores, como Vidas Seguintes, revelam-nos muito sobre esta parte de África banhada pelo Oceano Índico, muito sobre colonialismo, sobre turbulência política, sobre refugiados. É realmente uma região muito rica em material histórico para um romancista trabalhar?
Claro. E não só é rica, como, pensando na literatura africana, não é uma área muito explorada na ficção. Certamente, quando eu próprio era estudante de Literatura, em Inglaterra, a minha especialização, ao iniciar os meus estudos de pós-graduação, foi a Literatura Africana, e as pessoas presumiam que a ficção representativa de África era, de um modo geral, o que vinha da África Ocidental. E muito pouco se sabia ou se escrevia sobre a nossa parte do mundo. De certo modo, tal devia-se a uma espécie de autossuficiência da região. Grande parte da escrita ainda é feita em suaíli, por exemplo, ou noutras línguas. E suponho que a escrita não é assim tão importante, porque existem outras formas de transmissão. Oral ou através de viagens, as pessoas vão e vêm. E é importante o facto de que historicamente tudo remonta há muito tempo, às relações entre os países da costa do Oceano Índico, desde toda a costa de África, passando pela Arábia do Sul, o Golfo Pérsico, a Índia e mais além. Uma das coisas mais interessantes para mim, quando comecei a escrever, foi perceber que este é um mundo sobre o qual não se escreveu, pelo menos não em inglês. E, por isso, como escritor, foi muito tentador dizer: “Vamos…” Além disso, a história do encontro entre a Europa e estas partes do mundo, está em grande parte documentada, mas o que se sabe é, na sua maioria, o que foi escrito por europeus. E isso não conta a história completa. Conta apenas um lado da história. Portanto, há outro motivo para escrever: dizer que isso não está completo, eis aqui uma outra perspectiva, uma outra forma de encarar estes acontecimentos.»
Abdulrazak Gurnah (2025). Abdulrazak Gurnah: “O encontro entre Europa e África Oriental está bem documentado, mas o que se sabe foi escrito por europeus”. DN em linha, 19 de novembro de 2025.
Excerto da entrevista:
«Recentemente descobri que Portugal em suaíli é “Ureno”. Sei que está relacionado com a presença histórica de Portugal na África Oriental, desde a viagem de Vasco da Gama. Há ainda conhecimento desta presença portuguesa em Zanzibar? Algum legado que ficou?
Bem, certamente conhecemos “Ureno”. Mas também só descobri recentemente por que é que os portugueses são chamados de “Ureno”. Vem da palavra reino. Presumo que quando os portugueses chegaram, se apresentaram como vindos do reino de Portugal. Assim, a palavra manteve-se: “Ureno”. Portanto, sim, toda a gente sabe que significa “os portugueses”, e sabemos que os portugueses estiveram presentes de várias formas, porque nos falam disso. Mas também há algumas palavras que ficaram. Assim, por exemplo, o dinheiro é “pesa”. Em suaíli não significa peso, significa dinheiro. A palavra para mesa é “meza”. Então há certas palavras que sobreviveram. Há também as lendas que as pessoas contam sobre a presença dos portugueses aqui e ali. Portanto, mesmo de uma forma popular, mesmo sem se estudar História, há uma consciência de que os portugueses estiveram ali. E, claro, há, na costa, no Quénia, aquele enorme forte em Mombaça, o Fort Jesus, que todos sabem ter sido construído pelos portugueses. Zanzibar, como nação, antes de se tornar parte da Tanzânia em 1964, era duas ilhas principais, Ungunja e Pemba. Em Pemba, as touradas sobreviveram. Portanto, existe este tipo de legados. Penso que há também, numa das ilhas pequenas, várias campas de marinheiros portugueses, de soldados. Mas nunca lá estive.»
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