«[Cada existência faz história em si mesma, dispersa e separada num destino singular e indecifrável. São cortados os laços com as outras existências e as outras histórias particulares.]
É esta a privatização do futuro, fonte não apenas de angústia, mas também de violência difusa. A existência fica entregue exclusivamente ao percurso da vida física, remete para a biografia, na qual se concentram todas as expectativas. É por isso que o corpo assume um valor tão decisivo, no qual se joga até ao fim a luta contra o limite da morte. Tal como a dor, a doença e a velhice se tornam absolutamente intoleráveis, também o prazer, a amizade e o amor representam dons irrepetíveis, arrancados ao luto da catástrofe, instantes pontuais e descontínuos de um presente virado para a sua própria satisfação, numa luta incessante contra os outros. Cada um cultiva a sua utopia individual, uma quimera feita de sucesso, riqueza, prestígio. A maioria está destinada ao naufrágio. Como cumprir essas promessas arrojadas? Como podemos fazer com que essas fantasias narcísicas correspondam à realidade? As privações e os sacrifícios, difíceis, de suportar, na medida em que não são lidos numa perspectiva histórica comum, deixam espaço para a humilhação, a frustração, a raiva.»
Donatella Di Cesare (2020). Vírus soberano? (António Guerreiro, Trad., pp. 24-25). Edições 70.
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