Citação da semana – 8.nov.24

Citação da semana – Hélio Alves

«A primeira condição da literatura é a de ser migrante.

Fundada nos penhores da nacionalidade, a história da literatura anseia desde sempre pelo mesmo preço desprendido do seu objecto, pelo símbolo, pela arte, pela poesia. Mas tornou-se descrição de nações, mesmo quando mais se afirmava empenhada nos «valores estéticos». Por isso dividiu-se por línguas, por fronteiras geográficas, por reinados e dinastias, por patriotismos. Tais divisões no espaço e no tempo, consagradas durante a formação das nações europeias e americanas nos séculos XVIII e XIX, e conservadas na prática historiográfica da centúria seguinte, pressupõem uma unidade cultural, e até natural, de língua e de espírito. Cada literatura, designada segundo uma expressão linguística única («portuguesa», por exemplo), possuiria um temperamento próprio e característico, justificando a originalidade e a essencialidade da nação, e a função política de coesão da sua literatura. Numa palavra: «nós» seríamos, ou «eles» seriam, «assim». Como se a valia da literatura residisse no grau de relação de serviço que ela pudesse deter com a ideologia nacional e linguística associada a um território. Mas então cumpre perguntar-se: em que língua escreveu Gil Vicente? Cataldo Sículo tinha alguma coisa de português? Em que geografia andou o «ribeiro» de Bernardim? A pátria de Camões não a vislumbrava ele à distância da sua emigração? Onde era o lugar de Damião de Góis senão a deambulação europeia? Qual o país de Vasco Mouzinho, poeta acusado de traidor à nacionalidade? E o portuense António Nobre, porque anseia ele gritar «França! Pelo amor de Deus»? As respostas levam-nos a uma conclusão: a literatura foi apropriada pela história literária para servir os interesses desta, não para colher os frutos daquela.

É imperativo que a situação mude. Uma história literária de migrações não é só possível: é necessária. A literatura requere-a. Não tendo sítio a não ser o da literatura mesma, como limitá-la a outro?

(…)

Este livro não conta uma história de endogamias – da pátria, da nação, da língua, duma qualquer «essência» lusa, seja lá o que isso for – mas uma história, dura e difícil, de migrações. Porque é isso que a história da literatura (portuguesa) efectivamente é.»

Hélio Alves (2006). Tempo para Entender. História Comparada da Literatura Portuguesa (pp. 13-14). Caleidoscópio.

 

 

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