É um dos mais conceituados escritores de língua portuguesa, com vários prémios no currículo. Aceitou o repto do Expresso e na data em que se assinala o Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas escreve sobre a lusofonia.
Testemunhei em diversas ocasiões o genuíno espanto de cidadãos portugueses, em visita a Angola ou a Moçambique, quando percebem que a palavra lusofonia está longe de ser consensual, podendo levantar, pelo contrário, acesa polémica.
Em primeiro lugar, é importante ter em conta que em todos os países africanos, mas também no Brasil, em Timor-Leste, e até em Portugal, a língua portuguesa não está sozinha. Em Portugal o mirandês é a segunda língua oficial do país, desde 1999, lado a lado com a língua portuguesa. Além disso, há hoje largos milhares de portugueses que têm como língua materna o crioulo de Cabo Verde. Talvez seja altura de considerar também esta língua como idioma oficial. No Brasil, são línguas oficiais, além do português, o nheengatu, o tukano, o baniwa, o macuxi, o wapixana e o akwê xerente. Muitas outras deveriam beneficiar de idêntico estatuto.
Temos, portanto, no interior da lusofonia, inúmeras comunidades linguísticas que se esforçam por preservar identidades próprias, e que, em alguns casos, olham para a língua portuguesa como uma ameaça. Não se trata de paranoia. O português já foi língua de extermínio no Brasil, onde em cinco séculos se perderam muitas centenas de idiomas indígenas, alguns absolutamente originais, isto é, sem parentesco com outros. Em Angola, as línguas nacionais resistiram ao colonialismo, mas enfrentam agora a enorme pressão do português, que teve um crescimento assombroso nos últimos anos.
Antes da independência, o português era falado em Angola, enquanto língua materna, por uma percentagem muito reduzida de angolanos — no máximo cinco por cento. Hoje, mais de metade dos jovens e crianças já só fala a nossa língua. Creio não existir em África nenhum outro exemplo de um idioma colonial que se tenha enraizado com tanto sucesso. O problema é que a expansão do português se fez à custa de outras línguas, em particular do quimbundo. Hoje, nas ruas de Luanda, é muito mais fácil encontrar quem tenha o português como língua materna do que quem fale quimbundo.
Trata-se de um retrocesso imenso, considerando que no século XIX todos os habitantes de Luanda, fossem eles angolanos ou portugueses, falavam quimbundo. Naquela época chegaram a ser publicados jornais escritos inteiramente em quimbundo, e nas restantes publicações periódicas surgiam com frequência poemas, contos e artigos de opinião nesta bela e sonora língua.
Nas últimas décadas aumentou muito o trânsito de pessoas dentro do território da lusofonia. São movimentos complexos e plurais, que acontecem em todos os sentidos: há portugueses em Angola e angolanos em Portugal; brasileiros em Portugal e Angola e portugueses e angolanos no Brasil. Por outro, as novas tecnologias vieram facilitar a troca de informação em português. Vivendo na ilha de Moçambique, começo o meu dia lendo jornais angolanos, moçambicanos, brasileiros e portugueses. Nunca como hoje nos conhecemos (e reconhecemos) tão bem uns aos outros. Nunca houve tanta gente trabalhando em conjunto na construção de uma identidade comum.
Comparando com a francofonia e a Commonwealth, há diferenças importantes que explicam o sucesso do caso lusófono. Um deles é, por paradoxal que pareça, a fragilidade da antiga potência colonial. A não existência de um centro forte permitiu a emergência e a afirmação de vários outros núcleos de expansão da lusofonia, num movimento mais amplo e democrático. Basta pensar, por exemplo, na influência da cultura angolana em Portugal (e da variante do português angolano), através, sobretudo, da música popular urbana.
Estamos criando um espaço de língua portuguesa em que todas as partes participam de forma livre, em situação de relativa igualdade, sem dominados nem dominadores. Uma lusofonia horizontal, que não se esgota, longe disso, na língua comum. Uma irmandade autêntica.
O principal desafio que enfrentamos na construção desta irmandade passa pela forma como a língua portuguesa é percebida no espaço lusófono. O português tem de avançar em conjunto com as restantes línguas nacionais de cada país. Não pode ser percebido como inimigo, mas como parceiro. Apoiar a língua portuguesa em Angola, Timor-Leste, Guiné-Bissau ou Moçambique significa reconhecer a dignidade dos restantes idiomas nacionais e criar políticas para que essas línguas ganhem força e recuperem o prestígio. O desafio, portanto, é conseguir que a lusofonia seja encarada como uma dinâmica positiva em todos os territórios de língua portuguesa, pelas diferentes comunidades linguísticas que neles vivem.
Há que lutar também pela livre circulação de pessoas e ideias em todo o espaço da lusofonia. Precisamos forçar os nossos governos a instituir o tão falado “passaporte lusófono”. Parece-me igualmente importante facilitar a circulação do livro em português. Portugal, que foi capaz de desenvolver uma excelente rede de bibliotecas públicas, poderia ajudar os países africanos (e até o Brasil) a fazer o mesmo.
A língua portuguesa é uma construção conjunta de todos aqueles que a falam — e é assim desde há séculos. A minha língua — aquela de que me sirvo para escrever —, não se restringe às fronteiras de Angola, de Portugal ou do Brasil. A minha língua é a soma de todas as suas variantes. É plural e democrática. A sua imensa riqueza está nessa diversidade e na capacidade de se afeiçoar a geografias diversas, na forma como vem namorando outros idiomas, recolhendo deles palavras e emoções. Aprisionar a língua portuguesa às fronteiras de Portugal (ou de Angola ou do Brasil) seria mutilá-la, roubar-lhe memória e destino.
Com o colapso do Império, o português libertou-se. É nessa língua livre que eu me reconheço, e é por ela que luto.
In Expresso, 10/6/2019