Memento sobre Jorge Silva Melo (1948-2022)

Jorge Silva Melo (1948-2022) foi encenador, ator, cineasta e dramaturgo, incansável criador de mundos, doutor honoris causa pela Universidade de Lisboa, locomotiva intelectual, feroz defensor da sua e nossa liberdade de pensamento. É como se tivesse ardido, com a sua partida, a nossa mais esplêndida biblioteca, como se tivesse ruído o nosso mais fulgurante teatro.

Sobre Jorge Silva Melo (1948-2022):

Um “incansável criador de mundos”, um “obstinado construtor de outras maneiras de inventar espetáculos”, um “arquiteto de coletivos mais solidários”, uma “enciclopédia generosa ao serviço das novas gerações”, um “feroz defensor da sua e nossa liberdade de pensamento” e “uma locomotiva intelectual”: assim é recordado o encenador, ator, cineasta e dramaturgo (Expresso, 15.3.2022)

“Uma coisa que me interessa é o desejo. O desejo absoluto” – diz na entrevista a Luís M. Faria, em 11 de janeiro.

“É como se tivesse ardido a nossa mais esplêndida biblioteca, como se tivesse ruído o nosso mais fulgurante teatro. Que profunda tristeza”, escreve na rede social Facebook o dramaturgo e encenador Tiago Rodrigues, o ex-diretor artístico do Teatro Nacional D. Maria II. E acrescenta o autor de “By Heart” e “Catarina e a beleza de matar fascistas”, que este ano assume a direção do Festival d’Avignon: “O Jorge Silva Melo foi um incansável trabalhador do teatro, um obstinado construtor de outras maneiras de inventar espectáculos, um arquitecto de colectivos mais solidários, uma enciclopédia generosa ao serviço das novas gerações, um feroz defensor da sua e nossa liberdade de pensamento, uma locomotiva intelectual que transformou o teatro e a cultura de um país. É um mestre para tantas e tantos que com ele aprenderam, que com ele trabalharam, que se alimentaram do seu trabalho. Vai fazer-nos tanta falta.”

Apresentação na página do Festival Leffest, de que foi convidado especial em 2016:

Jorge Silva Melo [foi] diretor artístico da companhia de teatro Artistas Unidos, ator, dramaturgo, encenador e realizador. Estudou na London Film School. Fundou e dirigiu, ao lado de Luís Miguel Cintra, o Teatro da Cornucópia, entre 1973 e 1979. Bolseiro da Fundação Gulbenkian, estagiou em Berlim junto de Peter Stein, e em Milão junto de Giorgio Strehler. Acompanhou de perto a acção cinematográfica da geração que o antecedeu e a das que lhe sucederam. João César Monteiro convida-o, após ler uma crítica sua no Diário de Lisboa/Juvenil, para assistente no seu filme Sophia de Mello Breyner Andresen. Trabalha, com a mesma função, no filme seguinte do realizador, Quem Espera Por Sapatos de Defunto Morre Descalço, e no filme Pousada das Chagas de Paulo Rocha. É ator em Silvestre, de César Monteiro, em A Ilha dos Amores, de Paulo Rocha, no filme Conversa Acabada, de João Botelho, e ainda em O Sapato de Cetim, de Manoel de Oliveira. É argumentista em O Desejado, também realizado por Paulo Rocha, e em Xavier, de Manuel Mozos, entre outros. É autor do libreto de Le Château des Carpathes (baseado em Júlio Verne), de Philippe Hersant, das peças Seis Rapazes Três RaparigasAntónio, Um Rapaz de LisboaO Fim ou Tende Misericórdia de NósPrometeuNum País Onde Não Querem Defender os Meus DireitosEu Não Quero Viver (a partir de “Michael Kohlhaas” de Heinrich von Kleist), Não Sei (em colaboração com Miguel Borges) e O Navio dos Negros. Fundou, em 1995, a sociedade Artistas Unidos na qual [foi] director artístico. Realizou as longas-metragens Passagem ou A Meio Caminho(1980), Ninguém Duas Vezes (1984), Agosto (1988), Coitado do Jorge (1992), António, Um Rapaz de Lisboa (2001), e a curta-metragem A Felicidade (2009). E ainda os documentários Conversas com Glicínia (2004), Conversas em Leça em Casa de Álvaro Lapa (2006), Nikias Skapinakis: O Teatro dos Outros (2008), Álvaro Lapa: A Literatura (2008), A Gravura: Esta Mútua Aprendizagem (2008), António Sena: A Mão Esquiva (2009) e Ângelo de Sousa: Tudo o que sou capaz (2010). [Em 2016], realizou o documentário Ainda Não Acabámos: Como Se Fosse Uma Carta, sobre o qual escreveu o seguinte: “Uma deambulação por meio século, sim, uma carta talvez. Viagens pela minha vida, podia chamar-lhe eu, que tanto gosto de Garrett. Um traveling como ele gostaria, uma história solta, memórias, projetos, encontros. Também porque, desde 1995, tenho feito vários retratos de artistas (Palolo, Bravo, Lapa, Skapinakis, Bartolomeu, Ângelo, Sena, Ana Vieira e preparo Sofia Areal e Fernando Lemos), comecei a pensar que é isso a minha vida, estes encontros, ver, ouvir, cortar, mostrar, provocar. Quero, com este filme, continuar a mostrar o que vejo”. Traduziu ainda obras de Carlo Goldoni, Luigi Pirandello, Oscar Wilde, Bertolt Brecht, Georg Büchner, Lovecraft, Michelangelo Antonioni, Pier Paolo Pasolini, Heiner Müller e Harold Pinter. Em 2013, o LEFFEST dedicou-lhe uma retrospetiva, destacada numa publicação exclusiva intitulada O Cinema de Jorge Silva e Melo e os Sortilégios do Tempo. Em 2014, foi membro do Júri da Competição Oficial do festival, tendo também participado nas sessões de leitura, lendo excertos de Morro Como País do escritor e dramaturgo grego Dimítris Dimitriádis.

 

Jorge Silva Melo por ele próprio (Século Passado, Edições Cotovia, pp. 528-529, “Epílogo – Revisão da Matéria Dada”):

  1. Aprendi, miúdo, a atravessar cidades, a Paris dos livros de Balzac, a Florença de Pratolini, o Porto numa pensão diante da tipografia do Comércio a funcionar toda a noite, pantalones de pana nos Preciados, cinema no Palacio de la Música, bugigangas na Sepú, Londres depois, a estudar cinema, que é como quem diz (isso estuda-se?), no Metro e no autocarro, a Wanda de Barbara Loden foi então que por ela chorei, Berlim depois, na Schaubühne, o meu Peter Stein, dois anos por ali, Büchner em alemão, Heiner Müller às vezes ao jantar na Rheinbabenallee, Roma sempre e Milão, andar sem parar, entusiasma-me a cidade, procurar cinemas, entender o plano do Metro, ir em busca das livrarias, dos teatros, ainda estará na mesma sala do Prado o “Marte” de Velásquez? (agora, passam a vida a mudar os quadros das quietas sepulturas que haviam de ser as suas e era tão bom saber que ao alto das escadas à direita estava a “Maja” ou, na sala intermédia, a paisagem da Villa Medicis). Ai, aquela tarde em Milão na Civica Galleria, ao alto da escadaria ducal, em quartos mal amanhados, três Matisses, dois Klees, muitos Severini, um Bracque perfeito, pelas janelas o parque, e a passearmos ali, o Miguel Lobo Antunes comigo e mais ninguém.

 

Sessão especial na Cinemateca para Jorge Silva Melo e retrospetiva em maio – mais informação aqui.

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