Parecer sobre a Prova 639 de Português | 12.º ano de escolaridade | 2024

O parecer da direção da Associação de Professores de Português sobre a prova de Exame Final Nacional de Português – ensino secundário, 12.º ano de escolaridade, código 639, realizada no dia 14 de junho de 2024, inclui uma análise do enunciado da 1.ª fase.

A prova da 1.ª fase do Exame Final Nacional de Português, código 639, realizada no dia 14 de junho, apresenta um total de 15 itens a ser resolvidos pelos examinandos, dos quais 13 são contabilizados para a classificação final. Deste conjunto, 6 itens são de construção (40%) – 5 são de resposta restrita e 1 de resposta extensa – e são obrigatoriamente considerados para a classificação final, sendo os restantes 9 itens de seleção (60%). Os suportes textuais selecionados são um excerto da novela Coração, Cabeça e Estômago, de Camilo Castelo Branco, um poema de Álvaro de Campos («Depus a máscara e vi-me ao espelho…») e um excerto de Beleza: Uma Muito Breve Introdução, de Roger Scruton, em tradução de Carlos Marques – um texto sobre «juízos de beleza».

Os textos literários referidos exigem uma competência leitora desenvolta e sofisticada. A passagem camiliana (Grupo I, Parte A), que se reveste de um elevado grau de complexidade, na medida em que evidencia um léxico complexo, que obrigou à utilização de 11 notas para a sua clarificação (e mais seriam necessárias, para muitos alunos), assenta num registo irónico, não imediatamente acessível para quem desconhece a obra de Camilo, e utiliza reiteradamente expressões metafóricas que recorrem a termos pouco usuais (e.g., «A cara mantinha-se na prosa ignóbil do escarlate, mais incendiada ainda pelos acessos de tosse, provocados pelo fumo.», ll. 17-18).

Esta complexidade é atenuada porque o texto é sintetizado num parágrafo introdutório de apresentação do excerto, que refere que no texto «se caricatura a sensibilidade e o modo de vida românticos», e as questões de interpretação têm um grau de complexidade elevado, ao exigirem o estabelecimento de inferências – pela relação necessária entre diferentes partes do texto para revelarem a intenção de construção da imagem de alguém doente, no item 1., e para referirem os aspetos que evidenciam a dimensão cómica do retrato do herói, no item 2. –, mas essa complexidade acaba por ser também atenuada:

(i) quer pelo referido parágrafo de apresentação do texto («No excerto que vai ler, são visíveis as transformações operadas pelo protagonista com o intuito de se aproximar da imagem de um herói romântico.»);

(ii) quer pela formulação do enunciado (“Ao referir a «farsa em que eu a mim próprio me estava dando em espetáculo» o protagonista revela a sua intenção de criar uma imagem de si que não corresponde à realidade. Explicite em que consiste essa imagem.»);

(iii) quer por se tratar, no item 2., de uma atividade de recolha de informação explícita – o que torna estas inferências, e esta em particular, pouco exigentes do ponto de vista cognitivo;

(iv) quer por o item de seleção da Parte A pressupor uma inferência – a conclusão irónica de que a alteração forjada foi passageira – que já está ‘construída’ nos elementos a preencher pelos alunos na resposta curta.

Os itens propostos para a avaliação de desempenho no domínio da Educação Literária em relação ao poema de Campos (Parte B) são adequados ao preconizado nas Aprendizagens Essenciais e pressupõem três inferências, quer nos dois itens de resposta restrita – relacionando a importância da máscara na construção de uma dualidade entre ser autêntico e parecer, desempenhando a máscara um papel social, no item 4., e associando a máscara a uma vulnerabilidade ocultada, levando à conclusão de que há um autoconhecimento associado à aceitação de convenções sociais, no item 5. – quer no item 6., de seleção, em que a inferência decorre da interpretação de elementos textuais e das características da linguagem poética de Campos.

O item 7., da Parte C, que solicita ao aluno a comparação entre as ideias expostas nos dois textos anteriores e solicita um exercício de recolha de informação, sem que seja necessário convocar saberes adquiridos sobre aspetos literários, torna-se mais complexo pelas inferências necessárias para reconhecer os aspetos  que aproximam e que distinguem os dois textos – por ex., agir de forma consciente ao forjar uma imagem que oculta ou ao retirar a máscara vs. disfarçar uma imagem ou criar uma imagem falsa ou esconder o Eu original vs. imagem física e realidade psicológica vs. parecer o que  não é (um homem romântico, em Camilo) por oposição à duplicidade (no poema de Campos) –, mas parte desses elementos já foram, de certa forma, recolhidos nos itens anteriores, da Parte A e da Parte B, o que também atenua a complexidade cognitiva óbvia da Parte C.

O Grupo II (Leitura e Gramática) obedece ao modelo de Exame Final dos últimos anos e enquadra-se nas expectativas dos alunos: é composto por 7 itens de seleção e tem uma cotação excessiva – 13 pontos para cada uma das questões que podem, eventualmente, ser respondidas pela seleção aleatória de uma letra. No caso do Grupo II, apenas 4 itens são obrigatórios (perfazendo 52 pontos), mas no total da prova é possível obter 91 pontos só em escolhas múltiplas. Mais relevante ainda, no Grupo II, é o facto de só dois itens, um dos quais obrigatório, implicarem alguma complexidade mais elevada, por pressuporem alguma inferência – sobre estratégias argumentativas, no item 2., e pela interpretação de elementos textuais sobre juízos estéticos e juízos de valor.

A prova termina com um item de resposta extensa (Grupo III, 44 pontos, dos quais 30 para aspetos de estruturação temática e discursiva e 14 para aspetos de correção linguística) em que é solicitado um texto de opinião ligado à temática das redes sociais. A escrita de um texto de opinião retoma os conteúdos avaliados em provas anteriores, o que torna mais acessível este item, que se enquadra no universo de referência da faixa etária dos alunos e vai ao encontro das suas expectativas, mas não chega a solicitar propriamente uma reflexão, apenas a defesa de «um ponto de vista pessoal sobre a afirmação apresentada», o que pode conduzir, em muitos casos, à repetição de banalidades sobre os perigos das redes sociais para a construção de imagens pessoais falsas.

Considerando que, globalmente, a prova tem 15 itens, dos quais 10 são obrigatórios (66,6%) e 13 contam para a classificação final, sendo 6 (40%) de construção (5 de resposta restrita e 1 de resposta extensa) e 9 itens (60%) de seleção, dos quais 8 de escolha múltipla, o que perfaz um total de 117 pontos, dos quais 91 contam para a classificação final, que podem ser resolvidos de forma eventualmente aleatória, e que 10/15 itens (66,6%) pressupõem alguma inferência, dos quais 6/10 de mais elevada complexidade, mas que acaba por ser atenuada pelas razões anteriormente invocadas (nos 5 itens de resposta restrita e num dos itens de seleção), e que o género textual do item de resposta extensa surge nestas provas pelo menos desde 2007, temos de concluir que este Exame Final Nacional de Português, código 639, apesar de avaliar conhecimentos, capacidades e competências previstos nos documentos curriculares de referência, nomeadamente nas AE, ter uma extensão adequada e uma exigência apenas medianamente elevada, e ser uma prova adequada para o nível etário e cognitivo dos alunos, valoriza em excesso os itens de seleção e apresenta um modelo que, apesar do rigor científico, não tem níveis elevados de complexidade cognitiva, a que acresce a insistência num texto de opinião sobre um tema demasiado próximo da vivência dos alunos.

 

No contexto em que os exames ainda são vistos como meio privilegiado de seleção de candidatos ao ensino superior, o desempenho em tarefas de leitura e escrita em Português, em níveis cognitivos elevados, constitui uma conditio sine qua non de prosseguimento de estudos nos vários ciclos do ensino superior, o que não pode deixar de ser objeto de avaliação, dado o caráter transversal do conhecimento linguístico, explícito e implícito, exigido a todos os estudantes, e não apenas aos que se dedicam às humanidades. E daí que o Exame Final Nacional de Português seja obrigatório para todos os alunos.

Por outro lado, vários estudos mostram que a forma como o ensino é realizado é tão relevante como outros fatores (dimensão da turma, estabilidade da colocação dos professores, pobreza), o que pode introduzir enviesamentos criados por variações regionais, e não apenas sociais e económicas, ligados a fatores críticos da qualidade das escolas e a recursos disponibilizados, que condicionam o trabalho científico, pedagógico e didático realizado pelos professores.

Deste ponto de vista, o exame de Português, feito por todos os alunos e integrando a sua nota interna, será o melhor indicador de que estamos a corrigir os fatores críticos da melhoria da educação – precisamente por ser uma disciplina essencial na formação de todos os estudantes e transversal a todas as aprendizagens – com avaliação do cumprimento das metas de aprendizagem definidas nas Aprendizagens Essenciais e no Perfil dos Alunos, tendo em conta uma autonomia de facto na gestão curricular e na lecionação dos documentos curriculares de referência para o Português.

Sugerimos, portanto, e tendo em conta a existência futura de exames de Português em formato digital, que o Exame Final Nacional de Português possibilite a criação de provas não estandardizadas que permitam adaptar a dificuldade das questões às respostas dos alunos e, deste modo, avaliar e aferir, de forma universal, completa e rigorosa, a verificação das aprendizagens de cada escola, em geral, e de cada aluno, em particular, e que haja um maior equilíbrio entre os itens de seleção e os de construção, mas mantendo sempre, naturalmente, o rigor científico e uma extensão e exigência adequadas para o nível etário em provas calibradas com níveis elevados de complexidade cognitiva.

O ponto decisivo é mesmo este: permitir que o papel especial, transversal e interdisciplinar que as provas de Português podem ter seja vantajosamente utilizado para a melhoria dos fatores críticos da qualidade das escolas, para a verificação das aprendizagens que cada uma (como escola aprendente) e cada aluno, em particular, realizam, com provas não estandardizadas, que não repitam o modelo das provas em papel e que possam rentabilizar a futura avaliação digital, integrando o máximo possível de competências previstas no Perfil dos Alunos – mas dando às escolas do ensino superior a responsabilidade ética e profissional de escolherem e selecionarem os seus alunos.

 

Ficheiros disponíveis no IAVE: prova, critérios de classificação.

 

Lisboa, 28 de junho de 2024

A Direção da Associação de Professores de Português

 

 

 

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