um senhor de Matosinhos
andava eu no liceu: no salão nobre
dos paços do concelho em matosinhos,
um professor, o óscar lopes, vinha
mostrar à noite que a literatura
importa a toda a dignidade humana.
iam autores ouvi-lo, jornalistas,
estudantes, gente que ali morava
e outra que do porto em carro eléctrico,
o “um” para leixões, o “dezasseis”,
passando à carvalhosa, vinha sempre,
lá estavam joão guedes, tonitruante,
e júlio gesta, afável e risonho,
manuel dias da fonseca, mais calado,
augusto gomes e suas lentes grossas
a enevoar-lhe o olhar de ver as praias
rasas de cinza e luto, com vareias
por trágicos naufrágios ululando,
o egito, que então já se escrevia
com os poetas todos deste mundo,
o eugénio, de cachecol esvoaçante,
a modelar os gestos e os ditongos
medindo mãos e frutos, depurando
sílaba a sílaba, a sua incandescência
devia ser outono, ou mesmo inverno,
e fazer frio, e não faltava um torpe
sujeito de soslaio e bloco-notas,
tomando apontamentos com minúcia,
que a subversão quanto mais culta mais
impalatável era. fuzilavam-no
amigas minhas com o olhar, ficavam
mais belas só por essa exaltação
contida e faiscante de amazonas,
foi quando eu soube que as mulheres sabiam
resistir por instinto e se tornavam
mais agilmente elásticas no corpo,
mais livres e arriscadas nos seus gestos,
e no limite a cor afogueava-as,
e tão fulva energia em nenhum verso
coube jamais, que eu saiba, então na sua
voz calma e portuense, óscar falava
dos livros, dos autores, como quem trata
de assuntos de família e os desarruma
para os mostrar melhor, e acontecia
que isso era irrepetível e sem pompas,
como outra intimidade ao nosso alcance:
é sempre desconforme a literatura.
é mal-estar, princípio de prazer,
é trabalho forçado e liberdade
e um modo mais verbal de estar no mundo,
e nesse mar óscar lançava as redes
da pesca milagrosa, aquela terra
tinha essas tradições mais literais,
orlas de oralidade e maresia,
e embarcávamos todos na traineira
e era outra vez o senhor de matosinhos
com ex-votos à roda: impaciências
de passado e presente na palavra
e, entre a vida e a morte, o seu fulgor
em que, por crespas ondas, falar era
também filosofar e rebeldia.
tinham saído alguns discos recentes,
gravados por poetas: eu recordo
a voz do régio num, que achei roufenha
dos ensimesmamentos presencistas,
e vozes de combate que também
prestavam para pouco, mas sabia
tão bem partir a louça no salão
daquela edilidade, assim nas barbas
de toda a gente, era porém mais justa
a medida de que óscar nos falava
pois fazia pensar e punha em causa.
e alguém pedia às vezes um poema
quando a noite avançava e alguém dizia
outras coisas em código e ficavam
depois pequenos grupos à saída
como em cinemas de província, como
quem tem mais a dizer e veio vindo
devagar até aqui e aqui se encontra,
à espera de outro eléctrico ronceiro,
e vai falando tempos esquecidos,
sem pressa e sem vontade de ir embora.
Vasco Graça Moura, Uma Carta no Inferno, Quetzal Editores, 2.ª ed., 1999
(Agradecemos a Isabel Margarida Duarte a publicação deste texto na sua página do Facebook)