No caso do Prémio Camões, o júri justificou a escolha pela “importância transversal da sua obra ensaística, e o seu papel activo relativamente às questões da política da língua portuguesa e ao cânone das literaturas de língua portuguesa”. No âmbito da teoria literária, acrescentou o júri, “a sua obra reconfigurou a fisionomia dos estudos literários em todos os países de língua portuguesa. Objecto de sucessivas reformulações, a Teoria da Literatura constitui-se como exemplo emblemático de um pensamento sistematizador que continuamente se revisita. Releve-se igualmente o importante contributo dos seus estudos sobre Camões.”
Aguiar e Silva, cuja Teoria da Literatura – em 1967 e, numa primeira ocorrência, em fascículos, foi editada em Coimbra, pela Livraria Almedina e reeditada desde então – foi estudada por sucessivas gerações de estudantes universitários, era reconhecidamente um nome maior da universidade portuguesa e a sua obra marcou, de forma indelével, os estudos literários, a teoria da literatura, o ensino da língua portuguesa e o campo das políticas de língua.
A sua Teoria da Literatura, cuja tradução para espanhol permitiu ter um grande impacto no mundo hispânico, confunde-se com a história da disciplina introduzida nos curricula universitários portugueses com a reforma de 1957. Embora Aguiar e Silva tenha publicado depois uma série de obras de referência, quer no domínio da teoria da literatura, quer no dos estudos camonianos, dos estudos sobre o maneirismo e o barroco, ou sobre as humanidades, a Teoria da Literatura permanece a obra à qual o seu nome é de imediato associado, daí que, em 2017, nos 50 anos da sua primeira edição, a Universidade de Coimbra e a do Minho associaram-se numa comemoração, que foi também um momento de exigente reflexão académica.
Na conferência de abertura dessa comemoração, em “Coimbra: alocução de abertura”, disse Osvaldo Manuel Silvestre:
Num dia de grande ceticismo em relação ao rumo a dar à minha vida, tanto mais que estava já no 4.º ano do curso, sem ter sido ainda visitado pela Graça da vocação, entrei numa sala da FLUC, o Anfiteatro IV, para uma aula de Teoria da Literatura. Não descreverei, por pudor e falta de recursos retóricos, o que sucedeu então e ao longo desse ano letivo. Bastará dizer que na minha memória o curso se organiza, desde então, em função dessas aulas que, e agora di-lo-ei sem pudor, mudaram a minha vida. (…) O meu problema, desde o momento em que entrei no A[nfiteatro] IV para a primeira aula de Teoria da Literatura, é que nunca percebi bem o que é que tinha de facto visto ou, para o dizer de outra maneira, que tipo de experiência me tinha sido facultada. Em todo o caso, gosto de pensar que a minha dificuldade em produzir uma descrição dessa experiência não é substancialmente diferente da dificuldade que sinto em produzir descrições de experiências, também formativas, como ler as redondilhas de “Sôbolos Rios”, o Moby Dick, as bem-aventuranças, ouvir a música de Jimi Hendrix ou contemplar certos planos de Yasujiro Ozu.”
Em 2002, a revista Palavras entrevistou Vítor Aguiar e Silva. A entrevista, “Há um tempo para formar o leitor”, foi publicada no n.º 21, primavera de 2002, e na sua introdução podemos ler o seguinte:
«Vítor Manuel de Aguiar e Silva, professor catedrático da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra até 1989, Vice-Reitor da Universidade do Minho desde 1990, professor, ensaísta, investigador, ‘tutólogo’, filólogo, exegeta, teórico da literatura, é autor, entre muitos outros, dos seguintes trabalhos: Para uma interpretação do Classicismo, Maneirismo e Barroco na poesia lírica portuguesa, Competência linguística e competência literária: sobre a possibilidade de uma poética gerativa, Análise e metodologia literárias, Camões: Labirintos e Fascínios. É ainda o autor da mais conhecida e canónica Teoria da Literatura.
Nada do que à língua e à literatura diga respeito lhe é alheio. Leu tudo e conhece todos os autores. É já um autor clássico. Um clássico que defende, et pour cause, o mais clássico dos princípios: nada em excesso.
Por isso diz que há um tempo próprio para tudo, um tempo para formar o leitor mas, sobretudo, para viver e sentir a fruição do que há de admirável, surpreendente e fascinante na língua. O incêndio dos aspectos da língua, como diria o poeta.
Preocupa-o, por isso, a língua que se fala e se escreve nas escolas, uma língua em retracção, em vez da expansão que sempre ocorre, porque há um Saramago, um Herberto Helder. Porque houve um Camões.
É por isso que o texto literário não é um luxo. A língua do texto literário, como a língua, pura e simplesmente a língua, a língua em absoluto, é um instrumento por excelência de libertação do homem. Um instrumento que permite falar da “libertação do homem”.
De facto, semanticamente, nada é alheio à língua, em rigor não há um para além da língua.»
À pergunta “A mesma revista [Critical Inquiry] que publicou inicialmente o artigo de Knapp e Michaels, “Against Theory”, publicou recentemente um artigo sobre a célebre cafeteira Bialetti Moka Express [Jeffrey T. Schnapp, “The Romance of Caffeine and Aluminum”, Critical Inquiry, Autumn 2001, Volume 28, Number 1, pp. 244-269.]. Isto é um sinal dos tempos? Que balanço faz do estado atual da teoria e dos estudos literários?”, respondeu Vítor Aguiar e Silva:
«Os estudos literários, e em particular os estudos de teoria literária, tiveram um período de grande fulgor desde os anos 50 até cerca dos anos 70, quando no ocidente europeu se redescobriram os formalistas russos, os estruturalistas checos. Foi um deslumbramento, ainda tenho amorosamente conservados esses livros que chegavam nos anos sessenta, que nos traziam os grandes textos dos formalistas russos, dos estruturalistas checos. Depois o próprio estruturalismo francês contribuiu para criar em torno dos estudos literários uma espécie de atmosfera eufórica, a ideia de que se poderia construir uma ciência da literatura, até formalizada.
A partir dos anos 70 iniciou-se um refluxo, que tem a ver com a emergência do pós-estruturalismo, a emergência de algumas novas orientações, como por exemplo a dos estudos culturais, uma certa crise, não apenas nos estudos literários, mas em torno do próprio conceito de literatura. Começa a haver uma espécie de terreno pantanoso em que muitos nomes se foram afundando: mas afinal o que é literatura, o que não é literatura, quais as suas fronteiras, é possível constituir uma ciência, uma teoria da literatura?
A atmosfera que se segue ao colapso do estruturalismo é marcada, do ponto de vista epistemológico, por um forte relativismo, um grande cepticismo. Houve efectivamente um colapso do estruturalismo, no final dos anos 60, quer na linguística, quer sobretudo nos estudos literários. Por exemplo, a esse ensaio, “Against Theory”, foram publicados outros em vários números da Critical Inquiry, que foram compilados depois num volume intitulado Against Theory e que reflectem estas alterações que entretanto se verificaram nos estudos literários, quer na Europa, quer nos Estados Unidos, além de acolherem, alguns desses ensaios, aquela grande tradição empirista e pragmatista da cultura norte-americana e inglesa, que é radicalmente anti-teórica. Por outro lado, começaram a ganhar força na Inglaterra e sobretudo nos Estados Unidos os chamados ‘cultural studies’, que na sua lógica mais profunda e mais vasta provocam a erosão do próprio conceito de literatura e, por arrastamento, a erosão do campo dos estudos literários. Que na Critical Inquiryapareça um estudo sobre um objecto da vida quotidiana, sobre um ‘ready-made’, sobre uma das famosas caixas ‘Brillo boxes’ [de Andy Warhol], são indícios, sinais de uma grande tormenta, de uma grande mudança cultural. Mais uma vez, o que está aqui em crise é um certo modelo de universidade, o modelo da universidade prussiana, imperial alemã, de [Wilhelm] von Humboldt, que é a universidade guardiã da alta cultura, uma universidade que tem no seu corpo docente e nos seus alunos o escol de uma sociedade, que recebe os filhos do escol de uma sociedade para os formar, para eles serem guardiões desse grande património cultural, de que a literatura é, sob vários pontos de vista, a expressão mais prestigiada.
Quando nas universidades americanas entram milhões de alunos que provêm dos guetos sociais das grandes cidades, das periferias, estudantes de múltiplas etnias, de múltiplas línguas e culturas, a universidade tradicional, herdeira da universidade imperial alemã, não está preparada para receber esta nova população e procura outros caminhos. Os estudos culturais, quando aproximam o estudo da cultura da cultura viva das múltiplas etnias, das periferias da alta cultura, quando substituem o estudo da literatura, o estudo do cânone, dos grandes textos literários, pelo estudo, ou da televisão, ou dos filmes, ou da música rock, no fundo estão a ir ao encontro de novos públicos e de novas solicitações. O grande drama da universidade americana, que 20 ou 30 anos depois se reflecte na Europa, é este conflito entre uma universidade concebida como escola de elites e uma universidade que recebe alunos que não têm homogeneidade social, cultural, linguística – e o próprio corpo docente deixa também de ter homogeneidade social e cultural, porque também ele é muito heterogéneo.
Esse exemplo que deu é um sinal dos tempos. Não quero fazer futurologia, mas julgo que se tem de procurar um novo equilíbrio e hoje já são frequentes os estudos que se intitulam de ‘crise dos estudos culturais’. Julgo que nem regressaremos à universidade de tipo humboldtiano, prussiano, que predominou na Europa e nos Estados Unidos ao longo do século XIX e na primeira metade do século XX, uma universidade de elites para elites, em que o ensino do cânone literário tem um lugar fundamental, nem iremos ser devorados nem esmagados na engrenagem de uma universidade de massas, cega aos valores da arte e da cultura. É necessário um novo equilíbrio e reconstruir os estudos linguísticos e sobretudo os estudos literários à luz destas novas dinâmicas. Nunca se regressa de modo puro ao passado, mas também nada nos diz que a História seja uma progressão cega para o futuro.»
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