Parecer
Proposta: Programa e Metas Curriculares de Português do Ensino Básico
O Despacho 2109/2015 determina a colocação à discussão pública de uma nova proposta do Programa de Português para o Ensino Básico que visa agregar o Programa de Português de 2009 (PPEB) com as Metas Curriculares de Português (MC) de 2012, procurando constituir-se como “um documento único perfeitamente coerente”, introduzindo “os eventuais reajustamentos mínimos indispensáveis” que não obriguem à adoção de novos manuais.
O presente parecer leva em conta os contributos dos associados [1] e está organizado em 4 pontos. No ponto 1, levanta-se um conjunto de questões sobre a justificação educativa e científica do lançamento de um novo Programa de Português, a entrar em vigor no ano letivo de 2015-2016. No ponto 2, tecem-se comentários gerais sobre a proposta Programa e Metas Curriculares de Português do Ensino Básico (PPMC), que o Ministério da Educação e Ciência colocou em discussão pública até ao dia 17 de abril. No ponto 3, exemplificam-se aspetos específicos invalidáveis do ponto de vista científico e educativo no documento. No ponto 4, apresenta-se uma recomendação com que se procura ir ao encontro do objetivo enunciado no parágrafo introdutório do referido documento: «melhorar a qualidade do ensino e da aprendizagem através de uma cultura de rigor e de excelência desde o Ensino Básico».
1. Algumas questões levantadas pela proposta de um novo programa de Português do Ensino Básico
O Despacho 2109/2015 justifica a determinação de um novo programa de Português do Ensino Básico com “os resultados positivos” que teriam sido verificados em sala de aula, “conforme as consultas efetuadas junto das escolas e análise dos respetivos resultados da avaliação dos alunos” e com os “muitos testemunhos sobre a pertinência da entrada em vigor das Metas Curriculares”.
Como é possível chegar a estas conclusões? Pode-se afirmar que, em menos de três anos, a adoção das MC sobrepostas ao PPEB teve efeitos positivos em sala de aula? Como e quando foi realizado esse estudo? Por que razão não é do domínio público? Certamente que não será a partir dos resultados dos exames nacionais que se podem tirar conclusões robustas, uma vez que só em junho de 2015 os alunos do 6.º ano que estudaram no âmbito do PPEB revisto pelas MC irão prestar provas. Quanto aos alunos do 9.º ano, estudaram com base nas MC em 2013-2014, mas não o tinham feito nos anos anteriores. Aliás, o calendário de implementação das MC, como se pode verificar, só pelos exemplos anteriores, é bastante incoerente (Cf. Despacho n.º 15971/2012). Portanto, se não é a partir dos resultados dos exames nacionais, onde se encontram os resultados positivos invocados no Despacho 2109/2015 que justificam a próxima homologação de um novo programa de Português?
O PPEB resultou de um processo muito aberto de consulta pública que envolveu estudos, experiências curriculares anteriores, pareceres e formação. Foram reunidos consensos por parte de especialistas de diversas áreas, técnicos e professores do Ensino Básico. A informação foi analisada, publicada e divulgada. A nova proposta de programa não leva em consideração os resultados deste processo ainda recente e a sua discussão pública é realizada num escasso intervalo de tempo.
2. Comentários gerais sobre a proposta Programa e Metas Curriculares de Português do Ensino Básico (PPMC)
2.1. Não houve harmonização entre o PPEB e as MC, como estava previsto no Despacho n.º 5306/2012; há harmonização entre o novo PPMC e as MC. Decorre daí o facto de as MC terem obrigado à adoção de novos manuais escolares de Português, em todos os anos de escolaridade do Ensino Básico, enquanto com o novo PPMC não haverá necessidade de substituir manuais. O PPEB organiza as aprendizagens em função dos três ciclos de Ensino Básico, o novo PPMC distribui 998 metas curriculares obrigatórias pelos 9 anos de escolaridade. Como evitar que o novo PPMC conduza a situações de nivelamento simplificado ao definir uma organização por anos de escolaridade?
2.2. O novo PPMC, tal como as MC, expõe várias contradições que podem decorrer da tentativa de conjugação de duas posições pedagógico-didáticas dificilmente conciliáveis: a posição subjacente a documentos como o extinto Currículo Nacional do Ensino Básico (CNEB) e o PPEB, que visam o desenvolvimento de competências, pressupondo novas aprendizagens e associação de conhecimentos adquiridos a situações da vida extraescolar (inclusive de natureza profissional); a posição subjacente à elaboração das MC e, logicamente, ao novo PPMC, que visam sobretudo a aquisição de conteúdos e o controlo externo dessa aquisição, cuidadosamente orquestrado a partir de centenas de objetivos e descritores de desempenho.
2.3. A falta de rigor científico no documento das MC, que foram muito pouco alteradas, apesar dos vários pareceres negativos enviados ao MEC, nomeadamente da APP[2] e da APL, aquando da sua discussão pública, volta a registar-se no novo PPMC. Uma das diferenças cruciais entre o PPEB e as MC residia na organização do currículo de língua materna em competências, conceito cientificamente validado pela investigação em ensino das línguas há várias décadas. A proibição da explicitação deste conceito nas MC, e agora no novo PPMC, agudizará um paradoxo epistemológico, pois é inerente ao ensino e à aprendizagem de uma língua (cf. QECR[3], entre outros) trabalhar competências; por exemplo, fazemo-lo ao realizar uma produção escrita, ao ler, ao realizar uma produção oral. Contudo, segundo as MC e o novo PPMC com elas agora “harmonizado”, esse trabalho deverá ser descrito ou explicado a partir de conceitos como “capacidade” ou “conhecimento”.
2.4. Está ausente do PPMC qualquer orientação sobre a especificidade da metodologia e da avaliação nas aprendizagens formais de língua materna. Esta ausência é justificada pela confiança na autonomia de escolas e professores. Paradoxalmente, exige-se que todos cumpram ao mesmo tempo, no mesmo ano, os mesmos objetivos e conteúdos, que todos leiam o mesmo, o que só é possível se os alunos permanecerem passivos e acríticos a ouvir o professor debitar a matéria para os exames. Parece procurar-se garantir que tudo volte a ser como era dantes.
2.5. Os objetivos e descritores de desempenho foram elencados, “permitindo que os professores se concentrem no que é essencial”, por outro lado, “foram selecionados e elaborados no sentido de permitirem que cada um deles seja objeto de ensino explícito e formal”. Como pode um professor gerir o programa com autonomia e conceber o essencial, quando tem de lidar com conteúdos articulados com cerca de mil metas curriculares, cuja obrigatoriedade se encontra explicitada em todos os anos de escolaridade, nos seguintes termos: “A operacionalização dos conteúdos do Programa é definida nas Metas Curriculares. Os objetivos e descritores nelas indicados são obrigatórios em cada ano de escolaridade; devem continuar a ser mobilizados em anos subsequentes sempre que necessário. [4]“? A contradição gerada pelo direito à autonomia dos professores e das escolas e a imposição de um vasto corpus de leituras, de um infindável corpus de objetivos e descritores de desempenho e de um corpus de conteúdos é inquestionável.
2.6. Há divergências entre o novo PPMC e o PPEB, que relevam de opções metodológicas, educativas e culturais distintas, no que respeita a escolhas do corpus literário selecionado. Essa divergência acentua-se nas listas de textos literários, que são obrigatórios no novo PPMC para todos os anos de escolaridade. Por que razão se excluem, no 3.º ciclo, autores portugueses e de países de língua oficial portuguesa, que se encontravam no PPEB, como é o caso de Lídia Jorge, José Rodrigues Miguéis, Ondjaki ou Luís Fernando Veríssimo? Por que razão desaparecem autores estrangeiros como Cervantes, Molière, Italo Calvino ou George Orwell? Que textos literários absolutamente obrigatórios todos os alunos do Ensino Básico devem ler? Quem deve decidir acerca desse corpus textual? Por que razão não pode o professor escolher os textos de entre um corpus literário de referência?
3. Exemplos de aspetos específicos invalidáveis do ponto de vista científico e educativo no documento
3.1. Há incoerência entre os objetivos indicados nas páginas 6 e 7, que se apresentam com a abrangência de finalidades, e as metas curriculares listadas. Veja-se, a título de exemplo, o objetivo 18 (p. 6). Segundo este objetivo, os alunos devem “Mobilizar os conhecimentos gramaticais para aperfeiçoar as capacidades de interpretar e produzir enunciados orais e escritos”. Ora, a maioria das metas curriculares do domínio da Gramática, do 1.º ao 9.º ano, exige, sobretudo, tarefas classificatórias aos alunos, com descritores de desempenho e objetivos que implicam que os professores realizem inúmeros exercícios de identificação e de reconhecimento de categorias, de integração de elementos em classes, de aplicação de regras, num claro apelo à memorização, sem reinvestimento cognitivo no desenvolvimento da leitura, da escrita e da oralidade. Como se compaginam estes objetivos e descritores de desempenho que, na taxionomia de Bloom, correspondem a objetivos educacionais de níveis cognitivos mais simples, com os objetivos definidos na entrada do Programa, pressupondo análise, síntese e avaliação, de níveis cognitivos mais complexos, segundo a mesma taxionomia? Não é esta incoerência um erro educativo e científico?
3.2. Os descritores de desempenho do domínio da oralidade dos três ciclos do ensino básico apresentam discrepâncias que põem em causa a coesão, a coerência e, por vezes, a progressão do projeto de ensino e aprendizagem. Durante os primeiros quatro anos de escolaridade, não se distingue compreensão do oral e expressão oral e a interação oral apenas deve ser explicitamente desenvolvida no 3.º CEB. No entanto, logo no 4.º ano, os alunos devem debater ideias, depreende-se que sem regulação da interação oral. Talvez por isso, o debate seja inserido na produção. No 1.º CEB, a produção oral não espontânea nunca deve ser explicitamente planificada; no 5.º ano, a planificação dos discursos deve ser feita por tópicos que, só no 6.º ano, devem ser hierarquizados; durante todo o 3.º CEB, a hierarquização dos tópicos deixa novamente de ser necessária. A designação da expressão oral formal ao longo do ensino básico sofre alterações sem justificação aparente: “produção de textos diversos” (1.º CEB), “produção de discursos orais” (2.º CEB) e “produção de textos orais” (3.º CEB).
3.3. No domínio da leitura e da escrita, vários são os exemplos de desarticulação entre os objetivos e descritores de desempenho apresentados e o conhecimento prévio exigido para que os alunos os possam alcançar. A título de exemplo, veja-se o caso de um objetivo e respetivo descritor de desempenho do 3.º ano, onde se indica que, para “redigir corretamente”, o aluno deve “trabalhar o texto, amplificando-o através da coordenação de nomes, de adjetivos e de verbos”. Contudo, não se prevê qualquer reflexão sobre a “coordenação de verbos”, no domínio da gramática, e a “frase complexa” só ocorre como conteúdo no 2.º ciclo. Não é esta desarticulação também um erro educativo e científico?
3.4. No domínio da gramática, desaparece a referência a relações temporais como a anterioridade, posterioridade e simultaneidade de situações (essencial, por exemplo, para a descrição da «sequência de acontecimentos», prevista logo desde o 2.º ano de escolaridade). Não é esta omissão um erro científico?
3.5. No novo PPMC, opta-se por uma gramática focalizada em aspetos taxionómicos da morfologia, das classes de palavras, da sintaxe, em tarefas classificatórias, tantas vezes áridas e improdutivas. No PPEB, opta-se por um trabalho de explicitação progressiva de propriedades da língua, levando em conta o conhecimento implícito e a consciência linguística dos alunos e valoriza-se o papel da gramática na melhoria dos desempenhos dos alunos na escrita, na leitura e na oralidade. Vários exemplos de falta de rigor e de opções injustificadas face ao conhecimento científico que existe atualmente instalam divergências entre o novo PPMC e o PPEB. Veja-se o caso da omissão de funções sintáticas principais (como é o caso do predicativo do complemento direto) ou o ensino das funções sintáticas sem uma análise de constituintes imediatos (os grupos de palavras que, nas frases, desempenham as funções), que garante, nomeadamente no 1.º ciclo, a compreensão do conceito de função sintática. Não é esta omissão um erro científico?
4. Recomendação
Há, portanto, erros educativos e científicos no novo PPMC, um documento que se pretende que seja um normativo destinado a um campo tão fundamental como é a língua materna no Ensino Básico. A falta de rigor educativo e científico num documento normativo não é inconsequente. Na verdade, um bom professor pode ensinar bem com um mau programa, mas a falta de rigor acarreta necessariamente uma desqualificação do ensino e da aprendizagem. A isso acrescem outros problemas que as MC e o novo PPMC, que com elas se “harmonizam”, não resolvem, resolvem insuficientemente ou resolvem mal.
Propõe-se, assim, a não homologação do Programa e Metas Curriculares de Português do Ensino Básico e que seja realizado um trabalho de efetiva adequação entre as Metas Curriculares de Português e o Programa de Português de 2009, trabalho que nunca foi feito e que deverá concretizar a “harmonização” que o Despacho nº 5306/2012 previa e o Despacho 2109/2015 determina.
APP, 17 de abril de 2015
[1] Alguns desses contributos integram pareceres já enviados para o MEC.
[2] http://www.app.pt/521/parecer-sobre-as-metas-curriculares-de-portugues-julho-2012/
[3] Quadro Europeu Comum de Referência para as Línguas
[4] pp. 1, 2, 28, 45, 49, 54, 59, 65, 70, 75, 80, 85.