José Tolentino de Mendonça, “Louvor do livro”
Não podemos esquecer, (…), que a civilização que inventou o livro tal como até aqui o conhecemos, inventou também as condições requeridas para a sua leitura e que essas nos modelaram antropologicamente durante séculos e constituem um património cultural que precisamos de preservar. Pois quem inventou o livro inventou o silêncio da leitura; inventou essa forma íntima de temporalidade que torna o encontro com o livro indissociável do encontro connosco próprios; inventou a atenção, a aventura do conhecimento elaborada a partir de certas premissas e a curiosidade; inventou um regime social onde a atividade intelectual era admitida e, não podemos esquecer, esse regime libertou o homem, revelando-lhe a sua dignidade; inventou o direito universal à alfabetização e multiplicou as comunidade de leitores; inventou o individuo e a vida privada; inventou a confiança na consistência da linguagem e as bibliotecas; inventou os salões literários, os cafés e as praças como lugares de debate; inventou os sistemas críticos e hermenêuticos que garantem não só a legibilidade dos livros, mas a compreensão dos mundos possíveis; inventou as escolas monacais e a ideia moderna de universidade; inventou o humanismo e a liberdade de expressão, que é sempre inseparável da liberdade de ser. O livro acompanhou o nascimento e expansão das línguas modernas do Ocidente, e assistiu ao desenvolvimento das suas possibilidades expressivas, cognitivas e de imaginação. Quem inventou o livro inventou uma certa forma de produzir história e inventou também a figura de leitor que ainda somos.
Texto extraído do discurso proferido durante a entrega do Prémio Europeu Helena Vaz da Silva, para a Divulgação do Património Cultural 2020, no dia 23 de outubro de 2020, na Fundação Calouste Gulbenkian.