«O que significa para ti enquanto curadora apresentar esses filmes ao público português hoje, num contexto político-social ainda marcado por tensões raciais e pós-coloniais?
A verdade é que estou muito feliz com esta mostra. Há vários anos que eu e a Rita Fabiana, curadora do CAM, andamos a congeminar esta mostra. A Rita gostou muito de me ouvir falar de Cinema Negro quando fui apresentar o Path to the Stars da Mónica de Miranda, na estreia do filme — isto foi em 2022, creio — e disse-me logo que queria ver e mostrar os filmes de que eu falava. Na altura eram muito menos conhecidos ainda, porque nos últimos tempos felizmente os filmes têm tido mais divulgação, além de que apareceram outros filmes e cineastas novos e novas. Como dizia, pensámos logo em fazer, mas não foi possível fazer a mostra imediatamente; eu, na altura, não tinha financiamento para prosseguir o meu estudo e sentia-me um pouco insegura; entretanto, esse aspeto foi ultrapassado porque recebi a devida validação por parte da academia (estou a rir-me de mim própria); depois, o CAM entrou em obras… e só agora finalmente o ciclo vai para a frente. É muito importante mostrar estes filmes num espaço como o CAM. A história da Fundação Calouste Gulbenkian, como tantas outras instituições em Portugal, é uma história atravessada pelo racismo estrutural e institucional. Foram pessoas negras que construíram aquele edifício e, no entanto, poucas vezes lá entramos como artistas e mesmo como público. Quanto a curadores, devo ser das primeiras… Uma mostra de Gaze Negro de algum modo repara um bocadinho essa injustiça. Sou muito grata à vida por me deixar contribuir um pouquinho para a reparação do irreparável.
Isto que digo toca na tua questão do contexto, que me parece que colocas de modo bastante eufemístico. O racismo estrutural, o colonialismo e o recrudescimento da extrema-direita tornam esta mostra importantíssima nos nossos dias. Diga-se em abono da verdade que talvez ela não existisse se o mundo não fosse racista, colonialista e fascista. Mas se o mundo fosse perfeito, talvez não existisse arte. Nenhuma arte. A arte serve para nos consolar.
A mostra apresenta filmes que desconstroem narrativas oficiais e propõem reparações simbólicas. Como vês o papel do cinema na reconstrução da memória coletiva negra em Portugal?
Mais do que um papel importante na reconstrução da memória coletiva negra, o Cinema Negro pode ter um papel preponderante na reconfiguração da memória coletiva portuguesa e dar um contributo para a reconfiguração da memória coletiva europeia. É pelo menos assim que eu o vejo. O Cinema Negro que é também muito investigativo – aspeto muito transversal a toda a arte contemporânea, não apenas Negra – mostra-nos que as pessoas Negras não apareceram na sociedade portuguesa (e europeia) vindas do nada e de um momento para o outro. No caso português, há pessoas Negras em solo luso pelo menos desde o século XVI e sempre fizeram parte e sempre contribuíram de muitas formas diferentes para o que somos hoje enquanto sociedade. A História de Portugal é, sim, uma história de interculturalidade, de partilha, de proximidade entre povos e culturas diferentes e também é uma história de exploração e extrativismo, de escravização, de racismo, de ganância, etc. Tudo isto somos nós, portugueses, e o cinema ajuda-nos a aprender a conhecer e a lidar com os aspetos propositadamente invisibilizados da nossa história. Por outro lado, o Cinema ajuda também a combater a hipervisibilidade Negra, enquanto grupo. Porque se é verdade que os sujeitos racializados não têm visibilidade enquanto indivíduos, também é um facto que esses mesmos sujeitos são hipervisíveis enquanto representantes de um grupo; uma pessoa Negra é sempre percebida enquanto representante do seu grupo de pertença – todas as pessoas negras – e este cinema mostra pessoas Negras como indivíduos, mostra histórias de pessoas Negras – só isto, no caso português já seria muito, porque permite humanizar aqueles que foram sistematicamente desumanizados. No cinema também.»
Kitty Furtado (2025). «O Cinema Negro pode ter um papel preponderante na reconfiguração da memória coletiva portuguesa», entrevista com Kitty Furtado. Buala em linha, 13 de outubro de 2025.
Texto na íntegra e fonte da imagem aqui.
Kitty Furtado é a curadora da exposição Black Gaze – Mostra de Cinema Negro em Portugal, que vai ter lugar no CAM Gulbenkian nos dias 8, 9, 15 e 16 de novembro de 2025.