«Um dos aspectos cruciais deste livro [Camões – Vida e Obra, Dom Quixote, 2024] é o facto de nos servir como uma espécie de mapa entre toda essa parafernália de textos e especulações que, ao longo dos séculos, vários autores foram produzindo sobre Camões, e, depois, além desse confronto com todas essas leituras, há o reconhecimento da falta de informação fidedigna sobre a própria vida do Camões, o que em si mesmo define a atitude de sobriedade e suspeita que é própria da tua abordagem. Como é que foi para ti esse processo de descobrir o modo como deveria ser feito este livro?
O livro tinha, à partida, vários propósitos diferentes. Por um lado, era preciso reconhecer que quando alguém se adentra nos estudos camonianos depara-se com especulação sobre especulação… E aqui não estou a assumir uma postura em detrimento dessas abordagens, muitas delas sendo realmente notáveis, e obrigando-nos a reconhecer que, a partir daquilo que se sabe realmente, o que é possível fazer são este tipo de exercícios altamente especulativos. Mas essa noção levou-me a sentir a necessidade de fazer um ponto de situação, tentar tornar claro aquilo que hoje sabemos de facto sobre Camões. E percebo que esse exercício de confronto possa impressionar o leitor, mas acaba por não ser algo assim tão difícil, uma vez que o próprio estudo da vida de Camões foi sempre sendo feito assim. Aquilo que nós vemos são estudiosos a rebaterem os argumentos uns dos outros. Portanto, basta leres algum livro para estares sempre a ser relembrado dessas posições ou atitudes divergentes naquilo que ficou para trás.
Ou seja, sentes que essa é a própria característica que define a tradição da abordagem a Camões.
Sim, ou seja, apesar de tudo existia já alguma organização, alguma clareza nesse confronto de posições. Ainda que haja nesta tradição uma relação algo fragmentária, havendo estudos muito rigorosos para a genealogia e para a parte histórica, mesmo muito rigorosos, estudos do Martim de Albuquerque, do General Galvão Borges, até do Pinto Loureiro, muito importante para a família camoniana em Coimbra, o que ocorre é que isso, depois, muitas vezes não passa para quem faz estudos literários sobre o Camões. Quer dizer, o António José Saraiva não anda a estudar o Pinto Loureiro, ou seja, certas vezes ocorrem esses curto-circuitos, e a informação não passa de uns para os outros. E esse foi um dos meus propósitos, refazer o circuito, ligando a informação histórica e genealógica à informação interpretativa, e tentar que esse tal ponto de situação fosse mais alargado. Isto foi o que me pareceu ser uma necessidade do ponto de vista mais académico, sendo que o que me interessava mesmo era chegar a esse momento de leitura da obra, mas que seria reforçado por esses elementos. Ou seja, ter a informação e todo o estudo, combinando isso depois com a leituras dos textos em si, da obra. Aquilo que vai ficando claro é que o modo de ler Camões obriga a uma abordagem muito diferente do que seria ler um romance contemporâneo. É uma leitura que procura reaver um outro tempo, um outro modo de relação, uma atenção que não pode limitar-se a avançar pelas frases ou versos, mas que deve deter-se e buscar o sentido original, aquilo que foi sendo mudado ou erodido.»
Carlos Maria Bobone (2024). Carlos Maria Bobone. ‘Querer ler de forma virginal Os Lusíadas é entregar-se ao fracasso’. Sol em linha, 1 de julho de 2024.
Apresentação de Carlos Maria Bobone pelo poeta e crítico Diogo Vaz Pinto, que o entrevista:
«Alfarrabista e crítico literário, em vez de outra fanfarronada de quem se propõe vir agora exumar a lenda, Bobone disseca as especulações e faz um ponto de ordem depois de 400 anos em que Camões foi sobretudo um espelho dos seus intérpretes.»
Outro excerto da entrevista:
«Por outro lado, também é certo que uma pessoa ao deparar-se com Os Lusíadas consegue ler ali algumas descrições e encadeamentos rítmicos que ainda hoje nos atingem com uma frescura espantosa, e nesse sentido há um prazer de se voltar ao texto e de ler aquilo, mesmo superficialmente, que está lá e que é bom que qualquer um o possa sentir. De qualquer modo, todos nós temos algum amigo que, na adolescência, terá lido A República ou a Bíblia de uma ponta à outra e parece que aquilo não lhe disse nada. Há livros que nos rejeitam, que de algum modo nos dizem que não é assim que estes devem ser lidos. Apesar de o Camões poder ser lido quase com o recurso exclusivo ao texto, acho que obriga a uma leitura feita de repetição, de insistência, com um nível de atenção que não se confunde com esse exercício de quem fala de ler um livro como andar com os olhos da esquerda para a direita e ir passando as páginas. Entendo que o próprio texto nos pode orientar em relação ao seu contexto, é preciso é uma atenção que está muito para lá dos recursos habituais da maioria dos leitores. De resto, é claro que ajuda ler muita coisa à volta, frequentar os contemporâneos de Camões, ler os poetas coetâneos, e ter alguma capacidade de compreender o contexto do século XVI, ter também um bom conhecimento da língua… Uma pessoa ao embrenhar-se na poesia do Cancioneiro, na obra de poetas como Diogo Bernardes, António Ferreira, Jerónimo Corte-Real, dá-se conta que às tantas aquilo parece uma massa quase indistinguível, e só lendo com grande atenção é que começamos a dar por essas subtilezas.
Hélio Alves contesta até essa ideia da originalidade absoluta de Camões, seja no uso que faz da língua, nos requebros a que obriga a sintaxe, seja até nas suas descrições marítimas, ou noutras das temáticas centrais d’Os Lusíadas, e defende até que esta visão de uma obra que se impõe de forma triunfante esmagando ou condenando ao olvido tudo aquilo que estava à sua volta, que esta devoção camoniana funciona, como acontece amiúde entre nós, para apontar essas colunas que sustentam por si toda a nossa arquitectura linguística e cultural, deixando que o resto apenas seja enquadrado como paisagem. Dá a sensação de que o génio de Camões como nós o evocamos, quando contraposto ao desses outros poetas à sua volta, até beneficia se esses mais forem apagados. Porque o problema que se coloca é que a dificuldade de distinguir os poemas de uns e de outros é de tal ordem que persistem até hoje grandes dúvidas sobre o que é exactamente a obra do Camões, porque muitas das composições que lhe são atribuídas foram escritas por outros. E aquilo que imediatamente identificamos com Camões na verdade é algo mais lato e representa o espírito do seu tempo. Ou seja, é uma respiração e um modo de contemplação através da língua que foram cultivadas por uma série de figuras, e Camões tornou-se esse porta-estandarte que absorveu tudo à sua volta. Voltamos à imagem do eucalipto, essa árvore que, aqui por um defeito de perspectiva da nossa parte, parece secar tudo à sua volta. A este respeito, aquilo que Helder Macedo diz é que é importante discutir os poemas independentemente da sua autoria ter sido aclarada em definitivo.»
Entrevista e fonte da imagem aqui.