Emília Amor (1945-2023)

Emília Amor (21.9.1945-22.4.2023)

A vida de Emília Amor contada pelas suas próprias palavras, na “biografia” com que encerra o notável livro de memórias (Amor, Emília (2022). Pura Memória (pp. 189-193). Câmara Municipal de Cascais – Departamento de Arquivos, Bibliotecas e Património Histórico):

 

 

Nasceu em Lisboa de uma família que sempre prestou culto às suas raízes alentejanas e algarvias, em setembro de 1945, quando os hostilidades do segundo grande conflito mundial já tinham cessado, mas o medo surdo da guerra ainda pairava nos espíritos.

Da Lisboa de então recorda os longos passeios a pé até ao aeroporto ou  à Feira Popular, ou de elétrico à beira-rio, em que até chegar à Torre de Belém, ao Mosteiro e ao espaço envolvente de que tanto gostava tinha se confrontar com a imagem decadente e quase sinistra da central elétrica e do gasómetro.

Entre 1949 e 51, a família instalou-se sucessivamente em Viseu, em Aveiro e na Figueira da Foz, num regime que tinha tanto de precário quanto de flexível e estimulante para a sua capacidade de adaptação.

Em 1952, o pai, saturado de itinerância, decidiu comprar um terreno e erguer nele a sua casa. As memórias que registou e que publicou [no livro Pura Memória] são parte essencial do que ficou desse tempo: os primeiros quatro anos vividos em Caparide.

Depois, ao longo de sete anos, com a frequência diária do Liceu de Oeiras, o seu mundo alargou-se de novo.  Não era fácil, por essa altura, ser filha de um serralheiro em turmas de filhos de médicos, doutores e engenheiros – na verdade, aprendeu mais fora das aulas do que no tempo letivo. Tudo a fez crescer, gostar de aprender e assumir em pleno a sua vida.

Percebeu-o bem no dia em que, depois da partida da família para Moçambique, desfez sozinha o recheio da casa, fechou-a à chave e entregou-a ao senhorio. Tinha dezoito anos acabados de fazer e dava os primeiros passos no curso de História da Faculdade de Letras de Lisboa.

Os anos de 1963 a 68 foram anos de sobrevivência.

A academia não foi um lugar de convívio e de fruição intelectual. Depois da crise de 62, nada havia que a fizesse desviar-se do seu roteiro: concluir, em julho, os exames de todas as cadeiras, para poder viajar até à Beira e lograr três meses de férias com a família. E assim foi, por quatro vezes.

Esses períodos retemperavam as energias e permitiram-lhe ficar a conhecer um pouco do que era Moçambique em plena guerra colonial. Mas, além da casa paterna, quase nada a ligava afetivamente a esses lugares.

Terminado o curso, foi ficando em Lisboa.

Sabia – sempre soube… – que ia ser professora, mas não se apresentou a concurso; em outubro de 68, o seu propósito era frequentar o seminário preparatório da dissertação final. Em janeiro de 69, entrou na Escola Industrial Dona Luísa de Gusmão e começou a dar aulas de Língua e História Pátria a alunas quase da sua idade. Percebeu logo o quanto, numa escola velha, de idade e de processos, um professor jovem pode fazer pelos alunos. E, é claro, no final do ano meteu os papéis para o concurso do ano seguinte.

Depois de uma ‘falsa partida’ – colocaram-na no horário de Filosofia, no Passos Manuel –arrancou com todas as turmas do antigo 5.º ano do Rainha Dona Amélia e ainda uma do 6.º,  num total de cerca de quinhentas alunas.

No início da década de setenta, no complicado jogo das colocações, aceitou um horário na Escola Preparatória de Alcochete, de criação recente e dirigida por uma antiga colega e amiga do peito. Como o horário de História já estava preenchido, teve de aceitar o de Português e mais alguns encargos, num total de cerca de trinta horas. Esse facto mudou a sua vida: não apenas porque a obrigou a um contínuo reforço dos seus conhecimentos linguísticos e literários, mas, sobretudo, porque a ajudou a perceber como o domínio da língua constitui um poderoso fator de desenvolvimento e de autonomia.

De tal modo o projeto foi bem sucedido que foi convidada para, no ano seguinte, instalar a Escola Preparatória da Moita, o que constituiu o seu primeiro grande desafio profissional. Aos vinte e cinco anos, tornou-se uma diretora ‘todo o terreno’.

Foi um compromisso de três anos em que se esqueceu de que nem sequer tinha feito estágio. Por isso, em janeiro de 74, tomou a decisão de o levar por diante e nem os acontecimentos vividos a partir do 25 de abril alteraram essa decisão. A direção da escola recebeu, da parte dos professores, uma moção de confiança e Emília Amor pôde organizar a passagem de testemunho a uma comissão de gestão.

Em outubro, no auge do PREC, era professora estagiária na Escola Preparatória Eugénio dos Santos. De imediato, constatou que o mais difícil tinha sido chegar ali – o verdadeiro estágio tinha-o feito nos três anos anteriores.

Guardou do estágio memória de um trabalho honesto, embora ingénuo, imbuído do mesmo espírito que marcou esse tempo, em que todos acreditávamos participar na construção de uma sociedade mais democrática. Nele, foi possível dar continuidade ao seu interesse pelo ensino do Português e de tal modo que, no ano seguinte, foi convidada para orientadora de estágio dessa disciplina.

Abriu-se então um ciclo que só terminaria dez anos depois, com a passagem da formação de professores para as universidades, em moldes mais próximos dos atuais. Durante esse tempo, desenvolveu um trabalho intensíssimo, tanto na orientação dos estagiários como na sua própria formação.

Em 1986, duas colegas quase a obrigaram a concorrer ao mestrado em linguística da Faculdade de Letras de Lisboa. Contra as suas expectativas, foi admitida e voltou a um espaço conhecido e à condição de aluna, mas agora com a maturidade e convicção dos quarenta anos.

Findo o mestrado, também se abriu um novo ciclo profissional. Foi convidada a dar aulas na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação de Lisboa e, na sequência de toda a experiência anterior, teve oportunidade de desenvolver uma atividade multifacetada (de formação e supervisão, reestruturação curricular e investigação-ação) em diversos contextos e instâncias. Sempre sem perder de vista, como núcleo ou componente essencial dessa atividade, a língua, ou melhor, a didática da língua.

Do muito que, nesse período, concebeu e elaborou, destaca apenas o livro Didática do Português, publicado em 1993 pela Texto Editora, sucessivamente reeditado até ao presente. [Em 2022, em edição conjunta entre a APP e a Fundação Manuel Leão, publicou um novo livro, Didática do Português. Sinais de um percurso de vida.]

Quando percebeu que, entre aulas, projetos e conferências, do seu tempo e do seu esforço pouco ou nada era útil ou sequer passava para o exterior, nada justificava que continuasse a falar apenas para dentro da universidade. Voltou à escola, ainda que por pouco tempo, uma vez que aceitou colaborar, em moldes diferentes e algo inovadores, com o departamento de avaliação da Universidade Aberta em Lisboa, onde permaneceu três anos.

Entretanto, tinha começado a trilhar um novo terreno, o da lexicografia. Primeiro, numa colaboração, que se afigurava acessível e segura, num dicionário bilingue. As primeiras tentativas saíram bem e deram-lhe o prazer único de observar a língua como se o fizesse pela primeira vez. As perspectivas de estudo que então se abriram envolveram-na por inteiro.

O projeto de tese de doutoramento – no âmbito do léxico – foi sendo sucessivamente adiado. O golpe final aconteceu quando recebeu o convite para elaborar, em coautoria, um dicionário especificamente concebido para uso escolar. Aceitou o desafio e, ao longo de oito sofridos anos, fez dele o centro da sua vida – ainda que hoje, ao consultá-lo, talvez ninguém o pressinta…

Em paralelo, de 1999 a 2004, delineou e coordenou, sob a tutela da Fundação Calouste Gulbenkian, o projeto Littera – escrita, reescrita avaliação – de promoção do ensino do Português. Pela tentativa de resposta aos problemas reais e pelo modo como conjugou saber, experiência e inovação, foi a melhor forma de corporizar o que, a seu ver, persiste como válido no terreno tão estável do ensino e da aprendizagem da língua e da cultura. Várias vezes, no Projeto, se socorreu da condição de lexicógrafa e deu testemunho da importância do cruzamento de saberes, sejam eles da língua ou do mundo. Contudo, por razões que a ultrapassaram, o Littera não teve a divulgação prevista.

No final de 2006, já aposentada, viu finalmente publicado o resultado de tantos anos de trabalho: mais do que motivo de orgulho, o dicionário fazia-a arrepiar de cada vez que se confrontava com erros ou gralhas de toda a espécie.

Os anos seguintes foram de aposta na introdução de melhorias nas sucessivas reedições, mas são também um tempo em que, fazendo jus à língua, pôde finalmente transpor para a sua vida o lema do Littera: reunir e reelaborar sobre escritos soltos e ideias antigas para fazer deles algo mais do que papéis avulsos.

Não que antes não escrevesse. Na verdade sempre o fez, e não apenas em múltiplos registos profissionais. Mas, desde cedo, perfilhou a convicção de que escrever sem ter vivido pode ser uma impostura – umas vezes compreensível e sustentável, outras vezes ingénua e tosca… Por isso, arriscou dizer do escritor o que alguém já disse do lexicógrafo: devia ter, pelo menos, cinquenta anos bem vividos…

Foi vivendo, ou melhor e numa fórmula já cunhada, ‘escrevivendo’, sabendo que, a seu tempo, a língua, ou melhor, a escrita tomaria a dimensão, o lugar e o estatuto certos. Ela  afinal ocupou, por todas as formas, a sua vida. Foi, entre todos os encontros e desencontros que a preencheram, a única e inextinguível paixão e, ainda, a razão determinante desse texto de Pura Memória. Por isso, o foi concebendo na esperança de que não resultasse numa biografia formal e muito menos num currículo, mas numa história de vida, marcada por essa indizível relação.

 

Um exemplo dessa indizível relação com a escrita e da sua paixão pelas pessoas (id., pp. 153-154):

 

Gosto de observar as pessoas, de ler o seu olhar, de tentar adivinhar quem são no pôr das mãos e no jeito do corpo, na roupa com que o cobrem e descobrem, no pormenor com que rematam a sua imagem, do penteado ao lenço ou à gravata e aos anéis.

Gosto de as ouvir falar, de procurar raízes e origens na curva melódica da frase, num traço indisfarçável da pronúncia, na palavra arcaica ou erradia que, de repente, vem à tona; gosto de surpreender, de onde em onde, nos bem-falantes, um buraco de ignorância e de me espantar, nos outros, alguns quase sem escola e sem mundo, com a clareza e o colorido do seu discurso.

Gosto das pessoas que me falam da vida — da sua, bem ou mal vivida, e da de todos, em geral — do que nela vale a pena e do que não vai além de pura perda de tempo e energia, do que já fizeram e do que sonham vir a fazer ainda.

Gosto que me contem histórias dessas vidas, já vividas, ou de outras, imaginadas ou sonhadas. E de sentir como se divertem contando-as ou reinventando-as.

Gosto de encontrar aquelas que um dia se cruzaram comigo e a quem, ainda hoje, chamo amigo ou amiga; mesmo que raramente nos vejamos, com elas, cada reencontro é uma festa.

Gosto de encontros imprevistos, às vezes com pessoas extraordinárias, que habitam ou viajam ao meu lado, sem que chegue a conhecê-las; e gosto do acaso que, por uma vez, nos aproximou e me fez ficar a admirá-las.

Gosto das pessoas desconhecidas que, mal pressentem em mim uma igual, logo trocam olhares por afectos.

Gosto das conversadoras e bem-dispostas, para quem qualquer matéria, a qualquer hora ou em qualquer lugar, é um bom motivo de conversa.

Gosto das eternamente descontentes, que se indignam e protestam e sempre nos desafiam a engrossar a sua onda.

Mas também gosto das tranquilas, que ouvem e toleram mesmo o que não compreendem, e sabem que, na falta de melhor remédio, o tempo resolve o que elas não podem resolver.

Gosto das pessoas ingénuas, das que o são por natureza ou por crença, e se recusam a aceitar razões que as façam descrer dos outros ou que as tornem definitivamente cépticas.

Mas não gosto menos das que olham o mundo com sagacidade e sabem defender-se de excessos e de enganos.

Gosto de ouvir as pessoas cultas, ainda que, por vezes, a opacidade da sua erudição ou a sua retórica me cansem.

Mas ainda gosto mais das que se dizem ignorantes ou que são tidas por incultas; em geral, sabem sempre mais do que os outros ou elas próprias julgam.

Gosto das pessoas autênticas e genuínas, para quem a vida é um pacto permanente com a verdade.

E gosto das que mentem como último recurso e que, ao mentirem, dizem toda a verdade da sua miséria ou do seu desespero.

Gosto das pessoas poderosas que sabem que nenhum poder é eterno e ilimitado e que são capazes de abdicar desse poder.

E das que, sem qualquer poder, agem com o empenho e a convicção dos poderosos.

E gosto de muitas, muitas outras pessoas… De muitas mais do que aquelas de que não gosto.

Acerca destas, podia dizer que não gosto das pessoas inacessíveis e convencidas, sempre tão cheias de narcisismo e de autocomplacência.

Podia também afirmar que não gosto das desconfiadas, que, antes de desconfiarem dos outros, já nem sequer confiam nelas próprias.

E ainda acrescentar que detesto as que não são capazes de um gesto franco e generoso, de tão perdidas no seu calculismo do “deve e haver”, ou na sua rasteira mesquinhez.

Prefiro, em síntese, dizer que o que não suporto mesmo são as pessoas que desistem de viver e cultivam o irremediável, como definitivo álibi.

Mas sei o quanto os sentimentos são incertos e fugazes: quando uma pessoa me olha nos olhos, nesse momento irredutível, há sempre algo de novo a acontecer. E essa simples descoberta, se não me faz esquecer o pior do já vivido, faz-me, pelo menos, acreditar que, nela e em mim, o melhor ainda é possível.

 

Na Introdução à obra editada em 2022, Didática do Português. Sinais de um percurso de vida, podemos ler que

«Didática do Português – Fundamentos e Metodologia continua ainda hoje a ser a referência bibliográfica mais citada em trabalhos de formação de professores de Português e de investigação didática no campo do ensino e da aprendizagem da língua portuguesa (sobretudo na vertente de L1). Este facto, sinal do valor do seu pensamento didático, tem contribuído para a estabilização de uma configuração específica da aula de Português.

A interrogação, reflexão e ação de Emília Amor, no campo da Didática do Português, não se esgotou nesta obra seminal. Tem antes sido uma atitude permanente e integrada numa vida de entrega absoluta ao ensino e aprendizagem do português.»

 

Emília Amor era sócia honorária da APP, esteve ligada à sua criação e fez parte da direção, entre 1983 e 1986. O seu legado, na área da Didática do Português, da Lexicografia, da Escrita, também a autobiográfica, e da Leitura, também a literária, ficará connosco, sempre.

Em sua homenagem, o Núcleo de Investigação em Didática da APP atribui anualmente o Prémio Emília Amor de investigação em Didática do Português | APP, cujos primeiros vencedores foram galardoados durante o 15.º ENAPP, em Lisboa, no dia 12 de abril de 2023.

 

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