Reflexão da Associação de Professores de Português sobre a falta de professores e algumas consequências no sistema educativo

Portugal é o país da UE com a classe docente mais envelhecida. O problema da falta de professores é criticamente preocupante, porque persistente e sem ter uma solução rápida, nem robusta, no curto e no médio prazo.

De facto, os números parecem ser, de ano para ano, mais elevados. Em relação ao ano letivo anterior, faltam quase três vezes mais professores de Português para lecionar o 3.º ciclo e o secundário (alunos do 7.º ao 12.º ano). Na semana antes do início do ano letivo, em 2023/24, faltavam 129 professores de Português nas escolas públicas para dar 2.240 horas semanais – no ano de 2022/23, havia 48 professores por colocar, para um total de 559 horas, ou seja, o problema agravou-se cerca de 400% em termos de horas semanais e cerca de 250% em termos de número de professores. Como o Português é uma das disciplinas com maior carga horária semanal, as horas em falta crescem mais rapidamente e o problema agrava-se numa tendência exponencial.

 

É verdade que a situação melhorou depois do início do ano letivo – ainda que não tenhamos dados em ‘tempo real’ – mas a que preço? O grupo 300 continua a ser um dos que tem mais carência de docentes, sendo o terceiro, depois de Informática e Inglês, e cerca de 60% das escolas tiveram de recorrer a docentes sem habilitação profissional. No caso do grupo 300, em percentagem que ainda não conseguimos esclarecer, há no sistema educativo um número crescente de professores de outras nacionalidades (brasileiros, angolanos, santomenses…), o que cria um problema específico relativo à característica pluricêntrica da língua portuguesa que vai ser objeto de uma reflexão conjunta entre a APP e a APL, em junho, num seminário na Faculdade de Letras de Lisboa.

Estes dois factos, por si só, além de outras consequências que afetam a qualidade do ensino e da aprendizagem, como turmas cada vez maiores e professores com um número crescente de turmas, com recurso a horas extraordinárias, podem pôr em causa a qualidade do sistema educativo, nomeadamente quando as escolas precisam de recorrer a professores menos qualificados, como consequência direta do recurso à contratação de escola. Essa menor qualificação quer dizer que são professores que têm habilitação académica, que não têm formação pedagógica, e que, nalguns casos, têm uma formação científica que não é robusta.

O problema acabará por se refletir em resultados de aprendizagem mais baixos e com indicadores mais fracos na qualidade do sucesso, o que parece corresponder ao que já mostram os resultados das provas de aferição e do estudo PISA 2022. Esta situação tenderá a agravar-se nos próximos anos e tudo aquilo que puder ser feito para ajudar estes professores é ótimo.

Segundo os dados da professora Carlinda Leite (da Universidade do Porto, coordenadora do grupo de trabalho nomeado para rever o regime de habilitação profissional para a docência), o levantamento das necessidades de professores em Portugal, até 2030, mostra que a falta de professores é crescente e descoincidente da capacidade de formação inicial – em 2023, segundo os dados desse grupo de trabalho, tínhamos falta de 854 professores de Português; em 2024, serão 897 professores; em 2025, o número sobe para 1.134; quando chegarmos a 2030, teremos 2.861 professores de Português em falta,  e é muito preocupante que o sistema educativo não esteja a conseguir cativar jovens para a profissão, e muito menos os jovens mais qualificados.

De facto, e de novo de acordo com os números apresentados pela professora catedrática Carlinda Leite, em 2021/22, ingressaram apenas 113 alunos na formação inicial de professores de Português, o que significa um hiato, relativamente a 2022/23, de cerca de 740 professores. Como a formação inicial, tendo em conta o número de professores formados em mestrados para a docência, tem atraído um número bastante irregular, variado e insuficiente de professores, esse hiato entre a formação e as necessidades do sistema educativo vai necessariamente aumentar nos próximos anos – cf. dados de Luísa Louro[1], baseados no número de diplomados em mestrado para cursos de formação inicial de professores de Português que a DGEEC disponibiliza:

2002/3: 444

2003/4: 394

2004/5: 307

2005/6: 208

2006/7: 139

2007/8: 132

2008/9: 60

2009/10: 94

2010/11: 120

2011/12: 168

2012/13: 138

2013/14: 132

2014/15: 146

2015/16: 101

2016/17: 79

2017/18: 57

2018/19: 28

2019/20: 40

2021/22: 113

 

Estes dados querem dizer que, no caso da disciplina de Português do 3.º ciclo e do secundário, a situação é mesmo muito preocupante, dado o reduzido número de professores recém-formados nos últimos três anos (cerca de 7 vezes menos do que as necessidades atuais, com um ‘pico negativo’ de 28 professores formados em 2018/19, ou seja, cerca de 16 vezes menos do que em 2002/3, e os números foram sempre diminuindo, com algumas exceções, nos últimos 20 anos – de notar que o total de alunos inscritos em mestrados aumentou 23% entre 2013/2014 e 2020/2021, enquanto nos mestrados para formação de professores caiu 22%).

Apesar dos valores relativamente mais elevados entre 2010 e 2015, prevê-se insuficiência de professores de Português na próxima década, pelo menos. O aumento das inscrições nos cursos de formação inicial de professores nesta área irá colocar, certamente, uma grande pressão nas universidades e nas escolas superiores de educação, mas também não parece haver capacidade instalada no ensino superior para responder rapidamente a esta necessidade urgente. Além disso, o sistema educativo não consegue atrair os melhores alunos do secundário para esta profissão,  num quadro em que o desempenho dos professores é determinante para o sucesso dos alunos e o perfil de formação dos professores portugueses, e de Português, em particular, é pouco exigente e problemático (os melhores alunos não seguem esta profissão e muitos jovens vêm de escolas privadas, que inflacionam as notas), o que cria uma situação de ‘tempestade perfeita’. Acresce a isso o facto de a rotatividade dos professores tender a ser mais elevada nos agrupamentos de escolas em que os alunos têm notas mais baixas nos exames nacionais e têm um estatuto socioeconómico mais desfavorecido – o que mostra que é particularmente difícil fixar professores em escolas de contextos socioeconómicos menos favoráveis e pode explicar, pelo menos em parte, as grandes assimetrias regionais que os resultados dos alunos revelam e o estudo PISA confirma.

Diz Luísa Louro (id., ibid.):

«O débito do pipeline da formação de professores por parte das universidades é, de há 10 anos a esta parte, de tal modo insuficiente que não vai mesmo haver alternativa a não ser tomar medidas de recurso: permitir um maior peso de professores sem habilitação profissional no sistema; redução das horas de apoio ao estudo; aumento significativo do número de alunos por turma.

Dez anos de débito reduzido tornam muito pouco provável que ainda haja professores com qualificação profissional nestes grupos de recrutamento a aguardar por colocação. Os poucos que têm vindo a ser formados foram já, certamente, absorvidos.»

 

Como a disciplina de Português é nuclear em todo o processo de aprendizagem, e transversal a todo o currículo, porque todos os alunos, do 1.º ao 12.ºano, a têm, a presença dos professores de Português é absolutamente crucial para haver boa qualidade das aprendizagens, em particular aquelas que requerem a mobilização de competências de maior complexidade cognitiva.

Apesar de todos os professores serem professores de Português, num sentido forte do termo, o papel do professor da disciplina é absolutamente decisivo para que o desempenho dos alunos em tarefas de leitura e escrita, em níveis cognitivos elevadosaqueles que a maior parte dos alunos não conseguiram atingir, numa leitura rápida dos resultados das provas de aferição – permita aprendizagens de qualidade em todas as disciplinas.

 

Como dissemos em 7 de maio de 2022, no âmbito das VI Jornadas Pedagógicas da APP, na conferência de Luís Filipe Redes e João Pedro Aido, intitulada “As nuvens de Kelvin e o prazer (de escrever)”,

«O estudo sobre as práticas de leitura dos estudantes dos ensinos básico e secundário[2] mostra, em particular, que há uma relação forte entre as habilitações dos pais e o número de livros que os alunos têm em casa (cf. p. 21 e ss.) e com os seus hábitos de leitura: praticamente um terço dos alunos do ensino secundário nunca ou raramente vê familiares a ler. Mesmo não sendo possível no âmbito deste artigo analisar as tarefas que os professores de Português pedem para os alunos realizarem em casa ou na sala de aula (3/4 das vezes é para responder a questões sobre a obra ou o capítulo – cf. p. 27), o que pode ser confrontado com a observação do investigador Gert Rijlaarsdam[3], segundo a qual “ficamos a saber que, na escola, os alunos escrevem cinco a dez vezes mais nas disciplinas não linguísticas do que nas aulas de língua”, não podemos deixar de destacar que as três principais razões para os alunos irem à biblioteca escolar é para prepararem trabalhos escolares, irem à internet e passarem o tempo, e só em quarto lugar é para procurarem livros para ler nos tempos livres, constatamos ainda que os alunos que nunca ou raramente leem livros correspondem a uma percentagem estável de mais de 35% que nunca muda – e essa percentagem também não muda ao longo dos ciclos, o que poderá pôr em causa as estratégias das escolas de recuperação dos níveis de leitura em relação a este grupo de alunos.

Em suma, estes estudos mostram que a escola não sabe muito bem o que fazer, nomeadamente em termos de literacia de leitura, com os alunos que ficam retidos nalgum ano – bem como com os alunos com medidas seletivas e adicionais ou que nem sequer têm o português como língua materna –, o que se agrava se pensarmos que tem baixado a prática de leitura dos adultos (e mais de metade dos alunos provém de famílias com uma relação distante com a leitura), que a população escolar é cada vez mais heterogénea (havendo mais alunos provenientes de famílias desfavorecidas no sistema de ensino), que há um distanciamento face à biblioteca escolar dos alunos com poucos livros em casa – o que não é compensado por políticas públicas de promoção da leitura em relação a estes segmentos específicos da população – e que os usos da leitura e da escrita estão mais desligados do suporte em papel (cf. pp. 54-56).

Como responde a escola a este cenário? Ainda de acordo com este estudo sobre práticas de leitura, p. 55, com uma baixa exposição a atividades de leitura e de escrita nas aulas de Português (apenas um em cada três alunos – 34,9% – tem uma exposição alta). Outras conclusões deste estudo: há enfraquecimento da relação das famílias com a leitura, o alargamento da escolaridade obrigatória reforçou a heterogeneidade social da população escolar, há distanciamento face às bibliotecas escolares, as mudanças tecnológicas evidenciam usos da leitura e da escrita mais desligados do suporte livro vs. o impacto efetivo das atividades relacionadas com a leitura e a escrita desenvolvidas em sala de aula nas práticas de leitura dos alunos.  Uma resposta possível pode ser dada pelos múltiplos projetos de incentivo à leitura, de comunidades de leitores, de projetos de escrita ligados à leitura e à partilha dos comentários e das interpretações dos alunos. Ou mostrar que todos leem – como se faz no projeto da APP Ler Consigo, por exemplo.»

 

Além destas respostas, de exposição alta a atividades de leitura e de escrita, que tipicamente devem ocorrer na aula de Português, e de recurso a didáticas que privilegiem as competências mais complexas definidas no Perfil dos Alunos, a APP também está a amadurecer um projeto a que chamámos “mentoria” e que servirá para apoiar os professores mais jovens que previsivelmente vão entrar nos próximos anos no sistema educativo – professores com habilitação própria que acabam por vir para o sistema sem terem feito uma formação específica na sua área de docência. A ideia é que os professores com mais experiência lhes possam dar uma ajuda importante e, em muitos casos, criticamente importante.

 

 

Lisboa, 23 de fevereiro de 2024

A direção da Associação de Professores de Português

 

 

[1] Cf. https://ffms.pt/pt-pt/atualmentes/quantos-alunos-estarao-sem-aulas-daqui-1-ano

[2] Mata, João Trocado da, Neves, José Soares (Coords.) (2020). Práticas de Leitura dos Estudantes dos Ensinos Básico e Secundário – Primeiros resultados. PNL/ISCTE. Apresentação realizada a 30 de setembro, Lisboa, ISCTE.

[3] Pinto, Paulo Feytor (2019). Escrever é fazer sentido, é criar significado para partilhar com outros (Paulo Feytor Pinto entrevista Gert Rijlaarsdam). Palavras, 54-55,  14.