ESCRITORA DO ANO
Isabel da Nóbrega (1925-2021)
Escritora, cronista e tradutora.
BIOGRAFIA
Fez os estudos secundários em Lisboa. Em 1952, publica o primeiro livro, Os Anjos e os Homens, e, em 1955, a peça de teatro O Filho Pródigo ou o Amor Difícil, peça que foi apresentada no Teatro Nacional D. Maria II. Mas só em 1964, com o livro Viver com os Outros, alcança o reconhecimento do público e da crítica. Viver com os Outros obteve o prémio Camilo Castelo Branco, à data considerado o maior prémio literário em Portugal.
Ler + no Dicionário Cronológico de Autores Portugueses, Vol. V, Lisboa, 1998.
OBRAS, PRÉMIOS, CONDECORAÇÕES E ENTREVISTAS
Projeto Mulheres-Escritoras
Base de dados atualizada sobre a obra da autora. Inclui, entre outras informações, livros traduzidos, recensões críticas, os prémios, as condecorações e as entrevistas concedidas à imprensa.
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Consultar Isabel da Nóbrega
VIVER COM OS OUTROS
(Prémio Camilo Castelo Branco – 1964)
Discurso proferido por Mário Dionísio na entrega do prémio Camilo Castelo Branco para o melhor romance publicado em 1964 (excerto)
“Como num romance de Nathalie Sarraute ou de Claude Simon, o leitor é mergulhado numa conversa, cujos interlocutores desconhece e que com dificuldade vai identificando, exactamente, aliás, como acontece na vida real, quando entramos numa sala e contactamos de súbito com várias pessoas aí desconhecidas. Não sabemos bem quem são, nem mesmo quantas são. Levamos tempo a reconhecer as vozes, a perceber o que estas pessoas pensam, o que fazem na vida, que lugar nela ocupam, se são por nós ou contra nós, se alguma vez seremos seus amigos.”
Ler+ no Diário de Lisboa, 10.03.1966, ou aqui.
Recensão crítica sobre a obra (excerto)
Entramos na reunião de pessoas que conversam, não sabemos quem são, e não percebemos durante muito tempo a quem atribuir cada uma das falas. Aos poucos, vão surgindo nomes, e continuamos a não adivinhar, necessariamente, que nome atribuir a cada uma das falas. Não tem a menor importância porque, nessa espécie de daltonismo, vamos descobrindo e caracterizando cada um dos presentes.
São indispensáveis, para escrever um romance com esta ousadia, duas qualidades. Ter apreendido a mimar o discurso oral, sem discursos demasiado prolixos e literários, mas, pelo contrário, lapsos, hesitações, interrupções, e nesse aspecto, Isabel da Nóbrega é absolutamente extraordinária. Na nossa cabeça, mais do que ler, parece-nos estar a ouvir. A outra qualidade é oferecer-nos o ritmo do pensar, com confusões e cruzamentos – e isso é muito mais difícil, e menos conseguido, porque a solução é a de tratar o pensamento como uma fala interior, e nós sabemos que o pensamento nunca é propriamente uma fala. Mas a inteligibilidade o exige.
Ler + em Fluir – revista digital de literatura e artes, 2021.
RAMA, O ELEFANTE AZUL (Prémio de Literatura Infantil e Juvenil – 1971)
Uma história infantil de Isabel da Nóbrega ilustrada por Leonor Praça.
Ao deparar com as ilustrações que a Leonor Praça fez para o livro do [Alves] Redol, «A flor vai ver o mar », percebi que tinha de ser ela a ilustrar os contos infantis que entregava aos meus editores: «Quem é? Não a conheço! Onde mora?».
– O melhor é dirigir-se às Belas-Artes, ela tem lá uma exposição neste momento.
Desci à pequena galeria. Não digo que era uma hora morta porque não conheço horas mortas, não sei que haja horas mortas. Era uma hora tranquila, ao princípio da tarde, e não havia ali ninguém, senão uma rapariga estreita um pouco hirta, sentada na antecâmara.
Avancei e logo parei, como quem é obrigado a estacar.
Devia de estar a atravessar a «linha de demarcação»…
Para disfarçar o que senti ao ter o relance dos quadros, voltei-me um pouco de lado, dei dois passos atrás, e antes de tomar balanço preferi dirigir-me à rapariga e perguntei-lhe se era ela a Leonor. Era.
Reconheci imediatamente aquela voz sacudida, quase seca, quase agreste, reconheci a repressão que alguns seres têm de fazer sobre si próprios, as «aduelas que se vêem obrigados a colocar em torno da própria alma, para ela não se derramar sem ser nos vasos próprios… (Não pode haver desperdício nem enfraquecimento!).
Disse-lhe que me deixasse atravessar sozinha para «o lado de lá» e que já vinha.
Dos quadros da Leonor Praça têm falado os críticos de Arte. E as pessoas que lá foram, e as que compraram.
Eu comecei a andar à roda da sala e já não sabia se o fazia demasiado depressa se demasiado devagar.
A ternura, a ironia doce, a poesia, o sonho que não é evasão mas projeção (oh minha senhora das violetas!), a infância no seu estado puro, de milagre, o drama, o canto grave, a alegria, a ironia, outra vez. Não símbolos – sinais decifrados e oferecidos de maneira tão inesperada que não estando nós preparados nos sentimos vacilar.
Isabel da Nóbrega, «Homenagem a Leonor Praça», Quadratim – I Filipa, Palmira, Adelaide, Silvinha e outras, Lisboa: Editora Diabril, 1976 (excerto).
Ver e ouvir a história aqui
Ler + em A Viagem dos Argonautas
COMEMORAÇÕES ISABEL DA NÓBREGA – 2025
Divulgação mensal de contos, crónicas e artigos escritos por Isabel da Nóbrega.
Janeiro, 2025
UMA GRAFONOLA NA SELVA (conto)
Subiu Dona Blandina a pedir um ramo de cheiros para o assado, e quis mostrar depois a casa dela.
Já se sabe não pode comparar-se mas há tanto tempo prometeu e se eu não insistia era porque íamos fazer estas pinturas e modificar umas coisas e agora as pinturas estão feitas e é a altura tem que ser entre entre cuidado com o degrau esta casa de entrada era a única que a senhora conhecia não é assim mas agora demos-lhe uma volta porque o meu filho dormia aqui num divã mas era sempre uma cena queria deitar-se e nós em volta da mesa não digo já da televisão que o meu marido e a minha mãe vêem todas as noites a minha mãe mesmo que esteja para ali a cabecear não desiste fica sempre até ao fim ninguém a arreda mas o rapaz a querer deitar-se e acabava por se deitar zangado cada resmunguice e foram assim dezoito anos minto não digo tantos enfim desde que é senhor do seu nariz mas é natural coitado agora mais um ano e são as sortes veremos que sortes ora pelo menos até lá tem o seu canto quer ver é este cubículo que dá aqui para a sala cabe um divã à justa é um feitio de vão de esconso porque fica debaixo da escada mas põe-se a cabeceira do lado em que a escada sobe e ele tem cuidado ao deitar-se para não bater com as pernas nos bicos dos degraus fica com boa luz para ler que a lâmpada é forte está sempre agarrado aos livros o meu marido pregou-lhe aquela prateleira para o relógio e já a encheu de livros de dia a porta está fechada ninguém vê a cama e de noite dorme com a porta aberta para não abafar diz que foi preciso chegar à idade da tropa para ter um quarto seu foi pena não nos termos lembrado mais cedo estava o cubículo atravancado com caixas e coisas este quarto interior não é mau é onde dorme a minha mãe e a minha filha dormiam as duas na mesma cama que é de corpo e meio mas quando a minha filha se tornou senhora disse que queria dormir sozinha que mal cabia na cama que ela tinha um corpo inteiro e queria a um colchão só para si dorme naquele divã aos pés da cama da avó a gente disse-lhe que um dia que a avó morra o quarto fica todo para ela que apesar de escuro se pode depois arranjar à moderna a minha mãe é que é rija muito rija mesmo tem uma catarata é a única coisa e ninguém lhe dá a idade que já tem mas não há mal que entre com ela em todo o caso é assim morrendo ela sobeja este quarto para a nossa filha nós ficamos neste muito mais pequeno mas que tem aquela janelinha lá no alto que dá para o saguão o meu marido não aguenta dormir num quarto sem uma fresta de ar abafa e acorda de noite aos estremeções e em suores a minha mãe e a pequena não se queixam em todo o caso quando a minha mãe morrer a pequena passa a cama maior e fica com a cómoda o nosso quarto é pena ter de se passar primeiro pela coznha mas no final tanto faz é ter cuidado com os pés capacho aqui capacho ali a cozinha é bem boa também lhe fizemos pinturas o meu marido comprou o fogão já este ano nunca tínhamos tido forno agora é um regalo e fez também aquelas obras lá fora no pátio do saguão um canto onde podemos tomar duche com a torneira vinda de cima à fina sem termos de usar a celha e a mangueira de mão um luxo diz ele a pia essa não é arranjada este ano depois se verá morrendo a minha mãe sim que ela não vai durar sempre eu antes quero vender logo a minha parte numas terras que me hão-de caber lá na Beira coisa de nada mas que há-de luzir melhor aqui nalgumas obras da casa e vale a pena que a renda é barata o canto da pia por exemplo liga-se à cabine do duche e ficamos com uma casa de banho a sério já que moramos num rés-do-chão e isso tem coisas más pelo menos dá-nos a regalia de um saguão para o tanque e para estas cabines que a senhora há-de um dia ver com azulejos amarelinhos já disse ao meu marido amarelinhos e ele não vai contra disse só que para isso e com o pouco dinheiro que temos que para isso tem de morrer primeiro a minha mãe que os filhos entregam-nos tudo o que ganham só ficam com o dinheiro para os transportes a rapariga não sei se sabe que chegou a fazer o segundo ano completo e queria continuar não é que nós com sacrifício não pudéssemos continuar a pagar-lhe o liceu é que ela tinha mesmo que dar para a comida que come e para os sapatos e para o que veste tem de ser assim desculpe esse jornal aí no chão tinha esfregado a cozinha e foi para que não se sujasse enquanto o sobrado estivesse húmido quando passássemos para a casa de fora então gostou é uma casa de pobres está a olhar para o lustre é bonito veio da casa da minha madrinha que era uma senhora muito rica quando morreu como eu tinha lá estado todo o tempo da doença a irmã dela perguntou-me o que é que eu queria porque me queria dar uma coisa para a casa e eu escolhi este candeeiro que havia numa saleta é muito bonito com todos aqueles vidrinhos pendurados não dá com a mobília que eu sei ver mas paciência um dia havemos de melhorar a nossa casa quando —
Atalhei e despedi-me precipitadamente das duas senhoras. Talvez me tenha esquecido de dizer que a velha, a mãe, andara sempre connosco, atrás de nós. Com passo miúdo e firme, as mãos cruzadas nas pontas de um xalinho de lã, o rosto branco muito liso e sem expressão.
Fonte: Solo para Gravador, Lisboa: Editorial Futura, 1973, pp. 55-60.
Primeira publicação: Diário de Lisboa, Lisboa, n.º 17952, 14.12.72.
Fevereiro, 2025
O PODER E A GLÓRIA
Posso começar, penso para comigo, por aquelas considerações com que vamos ganhando tempo antes de dizer uma vez o essencial — o que tomamos, de cada vez, pelo essencial. Preparativos, cuidados. Assim um dispor e ajeitar de almofadas na sala da burguesa; assim a deslocação das pilhas de revistas, o sacudir com um lenço o pó mais visível, o preparar as duas chávenas para o mau café no quarto do estudante — tudo sempre afinal preocupações com o meio ambiente antes do encontro apetecido, da conversa possível ou do desencontro inesperado. Preocupações como gestos que favoreçam o entendimento, é o que quero dizer.
Posso também começar por prantar bruscamente o assunto no meio da merenda, atirá-lo aos olhos-braços-colos das pessoas tome lá! e voltar costas sem nunca cuidar do efeito, seja qual for, seja ele gravidade, nojo ou emoção.
Enquanto reflito já está defronte de mim a Dona Irene. Entrou na sua hora exata eu é que me tinha demorado para além das horas convencionadas (não digo normais porque não há horas «normais» em nenhum jornal).
Um a um ou em bandos haviam saído todos. Também para lá das suas horas. As máquinas pouco a pouco tinham emudecido, só o telex lá no fundo, bem abrigado, pulsava, e ia balbuciando por intermitências notícias do mundo.
O contínuo estaria ainda no seu posto, seu balcão e torre, pois que o ouvira trocar quaisquer palavras com alguém.
E agora D. Irene na minha frente, bata de trabalho descobrindo a manga da blusa vistosa, pano de pó na mão, o penteado com «mise» fresca, robusta de formas, olheiras fundas, expressão decidida e séria, de quem nunca precisou ouvir — nem em criança — que a vida não é um mar de rosas.
Não era aliás a primeira vez que nos encontrávamos no gabinete e falávamos um pouco, ela fazendo o seu trabalho e eu o meu.
Mas desta vez tive de interromper o martelar. Em seguimento de uma conversa que eu desconhecia (talvez a que tivera com o contínuo) interpelava-me numa espécie de frenesim: Não é verdade? Não é verdade que o destino é que manda? Que nós não podemos nada? Às vezes a gente bem quer mas o que tem de ser é o que vai ser mesmo! Eu só tenho a terceira classe e chega-me para saber estas coisas: o destino é que manda tudo.
Nervosa, começava a arrumar as secretárias, mas os olhos ancorados nos meus esperavam confirmação. — Sabe, talvez não seja bem assim… Claro, há coisas que as pessoas não preveem nem provocam, certas grandes doenças, a morte de entes queridos, por exemplo, ou não podem previamente decidir, como o local do nascimento, a classe social, o nível de instrução que lhe é administrada nos primeiros anos da juventude. Outras porém existem, que, parece-me, dependem de nós, da nossa vontade.
As mãos ágeis arrumavam, limpavam mesas, cinzeiros, cadeiras, baldes. Os olhos pestanejavam com o esforço de entender, as pestanas batiam como vassourinhas que em cada bater empurrassem «lá para dentro» significados novos, pedacinhos da imagem que no interior do entendimento se reunia inteira. — Ouça, vontade, aqui, não representa «voto» ou «desejo» quer dizer não é por formularmos um voto, um desejo, uma aspiração que esse voto acaba logo ali — é projetar-nos nela, nessa vontade escolhida, e acompanhá-la, balizá-la, alimentá-la, como a uma planta ou a um animal; melhor, como fazemos ao nosso corpo, para que se mantenha. Então assim a vontade fortalece-se e caminha, e nós podemos ser uma vontade a andar…
Entendeu tudo. Consolada, interrompeu por minutos o serviço, e encostada ao estirador, torcendo o pano, falou:
Claro que ela por exemplo só tinha a terceira classe não tinha muito por onde escolher mas por isso mesmo por não ter muitas habilitações é que até podia ter sido perigoso porque afinal era mais fácil, ou não era? andar por aí à toa que roupa não lhe faltava e como fazia limpeza na sala de cabeleireiro de uma amiga que até por sinal lhe devia favores pois que a tinha ajudado um dia numa aflição e lhe passara prás mãos as suas economias até que a amiga pagara as dívidas contraídas pelo pai e casara bem e lhe pudera pagar e tinha posto um cabeleireiro e agora ela limpava lá mas também a outra fazia-lhe as «mises» que ela quisesse. Por isso podia andar assim bem arranjada e aproveitava. No outro dia uma antiga vizinha ao vê-la sair ali dos escritórios tão tarde, com a roupa do serviço metida no saco esboqueirado dissera antão você não tem vergonha de andar a trabalhar nisso o quê trabalhar nas limpezas não é vergonha nenhuma vergonha são outras coisas por isso é que eu digo à senhora que afinal é verdade que se pode dar uma volta ao destino que eu quem diz eu diz outras mas eu vim para Lisboa tão novita que podia estar agora noutro género de lugares e escolhi antes estar aqui isto dá com coisas que a senhora disse ou não dá? É como isto de eu ter só a terceira classe, realmente já tenho pensado vou mas é ver se posso tirar a quarta não sei bem como porque são muitas as horas do trabalho mas se puder vou tentar e pelo menos sou eu que decido isso não é como a senhora dizia? Com licença agora vou outra vez lá para dentro que ainda falta do outro lado.
Vim-me embora. Na manhã seguinte concluiria a tarefa. Pela rua abaixo — e não entram hoje aqui nem cheiros verdes nem luzes coalhadas, nem o restolhar das folhas do parque, nem reflexos da lua vaga sob o ténue fio das nuvens —pela rua abaixo murmurava sem muito bem saber como uma remota frase do Pai-Nosso que a tradução portuguesa rejeitou e diz «porque Teu é o reino, o poder e a glória». Repetia eu que se nunca é nosso o reino, é nosso, às vezes, o poder e a glória.
Na imprensa: “Quadratim – O Poder e a Glória”. Diário de Lisboa, 07-09-1972.
Compilação de crónicas: “O poder e a glória”, in Quadratim-I Filipa, Palmira, Adelaide, Silvinha e outras. Lisboa, Diabril Editora, 1976, pp. 132-134.
Nota: texto adaptado às regras do novo Acordo Ortográfico.